Dia 10 de Março, domingo, teremos a cerimônia do Oscar 2024. O evento, apesar de sempre polêmico e (discutivelmente) cada vez menos importante, ainda traz atenções ao seu redor, e estimula a discussão entre as suas indicações. Assim, a equipe do OCA-UFF não poderia deixar de pelo menos comentar sobre os indicados de melhor filme. Algumas obras ganharam sua crítica própria, é o caso de Vidas Passadas, Barbie e Pobres Criaturas (cuja crítica sairá no dia seguinte dessa publicação). Vocês podem ler elas clicando no link abaixo. 

Crítica de Vidas Passadas (Por Marcelle Souza)

Crítica de Barbie (Por Julia Alimonda)

Nessa coluna, no entanto, nós reunimos a equipe do OCA-UFF para fazer mini-críticas sobre os outros 7 indicados, permitindo que você – leitor – veja diferentes pontos de vista a respeito das obras. Se quiser trazer seu próprio ponto de vista, concordar ou discordar com alguma das críticas, convidamos vocês a fazerem seus comentários lá na nossa postagem do Instagram @oca.uff

Sem mais delongas, vamos lá! (Os filmes estão em ordem alfabética)

 

Anatomia de uma queda


Giovana Lopes (@gigiolopesz)

A noção de culpabilidade e a construção de uma narrativa são o que movem todo o enredo de Anatomia de uma Queda. A incerteza dos acontecimentos e carga emocional dos presentes na cena da fatalidade fazem até o espectador questionar (uma pergunta que não é respondida completamente) se realmente foi um assassinato ou um suicídio. Independente da opinião pessoal, a trama encontra seu resultado no final do julgamento e, concordando ou não, somos obrigados a aceitar o veredito.

Com atuações impecáveis, reflexões sobre estereótipos de gênero e sexualidade ganham uma relevância que inicialmente não era pensada por quem assiste. Somos expostos a diversas razões para querer culpar a esposa mas, pelo menos ao meu ver, acabamos criando uma empatia ao passo que a maioria das justificativas para culpá-la se baseia em preconceitos daqueles que a perseguem. O impasse dos idiomas falados no tribunal e a clara dificuldade que isso traz à protagonista de realmente ser ouvida e compreendida, em paralelo aos problemas de comunicação em sua própria casa, intensifica a sensação de falta de capacidade de lidar com essa situação. Um filme que prende o público e constrói sua atmosfera a partir da dúvida. Afinal, toda história tem mais de um lado.

Janaina Schequenne (@schequenne)

Esse filme consegue fazer um grande acontecimento com uma narrativa totalmente ordinária. E isso é domínio da linguagem cinematográfica, isso é saber usar o som e a imagem para contar uma história. Os enquadramentos aprisionam em lugares na tela, onde pode ser que nada esteja acontecendo, mas o zoom no rosto, ou na boca do personagem pode nos levar pela milésima vez a duvidar da veracidade ou da certeza do que é dito. E o som está ali para colocar o espectador em total desconforto, seja durante uma música pop, ou ao som furioso de um piano. 

Ao se colocar na situação da personagem, é impossível não ficar aflito. A tensão criada, a partir dessa invasiva proximidade, que também incomoda os personagens, o espectador entra como verdadeiro intruso na vida dessas pessoas, causando ainda mais desconforto. E a todo momento, existe uma sensação de que há algo de errado acontecendo, e alguma informação nos levará a verdade, e ela está para chegar. Mas, saborosamente, não chega; não há uma grande revelação digna de Sherlock Holmes.

O roteiro é inteligente por fazer o público descobrir coisas importantes sobre a vida de um casal ordinário – que briga, que discorda, que grita, que ama do seu jeito não romantizado, ou que está deixando de amar – em pequenas doses, transformando questões cotidianas em grandes motivos para um assasinato. Claro, que o público só fica investido no que está acontecendo, devido a espetacular atuação de seus protagonistas, Milo Machado-Graner, que interpreta Daniel, e a indicada ao Oscar de melhor atriz, Sandra Hüller, que interpreta Sandra. A atriz simplesmente carrega o filme nas costas, ela parece verdadeira, mas é difícil de entender sua frieza, ela parece culpada por não ter sido o melhor que poderia ser, mas ao mesmo tempo parece apenas uma mãe em aflição, se esforçando para que isso seja o menos doloroso possível para seu filho. E apesar do roteiro sabe jogar com as dúvidas do espectador, ele falha um pouco na forma como as acusações sobre Sandra são feitas, claramente estão tentando atingi-la pessoalmente, e em nenhum momento aqueles que buscam incriminá-la trazem argumentos de fato convincentes. Em todo o momento do julgamento não há como tirar a razão da personagem, as acusações são totalmente morais, o que não faz questionar se de fato há alguma razão nas acusações. A conclusão acaba sendo um pouco óbvia nesse sentido.

 

Pedro Lauria (@opedrolauria)

Anatomia de Uma Queda seria o último filme que você esperaria ter “a melhor atuação animal” da história. E ele provavelmente é. E ainda assim, isso é só uma gota em uma obra extremamente competente em demonstrar a complexidade humana. Ao nos colocar sempre em dúvida sobre seus personagens e suas relações, Anatomia de Uma Queda não se furta de mostrar as piores facetas de um ser humano. Porém, o faz sem jamais vilanizar ou vitimizar ninguém, se configurando como um excelente estudo de personagens e – porque não – da humanidade.

Com uma atuação memorável de Sandra Hüller (protagonista do igualmente marcante Zona de Interesse), Anatomia de Uma Queda é um grata surpresa para um subgênero que costuma ser bastante formulaico: os filmes de tribunal. Sem se deixar levar por uma construção previsível e, ao mesmo tempo, sem nunca deixar o espectador perdido em sua construção cronológica – ele permite que nossas dúvidas, como espectadores, sejam exclusivamente morais. Melhor ainda, que elas permaneçam conosco até depois do encerramento dos créditos.

 

Ernesto Loaiza (@sejacinema) 

Aqui, os fatos são tão pequenos, em sua objetividade anatômica, que tentam mostrar a verdade em croquis e maquetes, mas há chance de, nas palavras literárias, que seja possível compreender mais ainda a alma dos envolvidos. Experimentando com o conceito da verdade por si só, Anatomia de uma Queda tem como propósito ser um filme inconclusivo, já que a pura verdade é inalcançável. Não há flashbacks revelando o que aconteceu, nem uma prova a surgir no último segundo, mas há a resolução judicial e, principalmente, a aceitação da posição de um filho, necessária para seguir em frente. 

Me impressiona, contudo, que uma das cenas de maior repercussão tenha sido a recriação cinematográfica do áudio gravado entre Sandra e Samuel, mas por razões que não têm tanta ligação ao cerne do filme. Evidentemente, a atuação de Sandra Hüller é um show à parte, controla bem a intensidade de sua voz, nos mínimos detalhes, mas parece-me que e repercussão é mais de apoio a um momento “empoderado” da protagonista do que de aprofundamento em todas as questões do filme sobre o que seria a verdade, o que seria o mais sensato pela dificuldade de alcançar tal verdade. O fato de uma mulher ser muito mais eloquente que o homem, fazendo com que seus argumentos em uma discussão pareçam sólidos e inteligentes, evidencia que o que ela diz é verdade? O filme debruça-se, é claro, na defesa de Sandra, afinal, Samuel está morto, mas é cabível, em um filme como este, tomar um posicionamento como espectador? É certo que a frase “Sua generosidade esconde algo mais sujo e cruel”, com a intensa voz de Huller, marca um dos diálogos mais bem escritos do ano, mas, independente da imponência da personagem nessa cena, não significa nada para encontrar “a verdade”. 

Ocorrem tentativas de aproximar-se dela  utilizando diversos recursos, mas, no fim das contas, nada poderá ser descoberto. Paradoxalmente, pareceu-me mais revelador da essência da personagem a passagem em que lêem-se trechos de suas últimas obras, o que poderia revelar o inconsciente do artista imprimindo-se em sua arte, como também, é claro, possa não ter relação alguma com a realidade. A experiência geral de Anatomia de uma Queda, portanto, devido ao seu caráter inconclusivo, rende discussões interessantíssimas sobre sinais, reações, olhares, enfim, elementos audiovisuais que podemos captar e interpretar da nossa maneira, ou seja, podemos analisar a própria anatomia fílmica, mas, tal qual todas as cenas de tribunal, não chegaremos perto da verdade.

Victor de Almeida (@victor1almeida)

O tal filme do ano, de Justine Triet, é muito mais do que um filme de tribunal. Óbvio que alguma convenções do subgênero aqui aparecem, como não poderia deixar de ser, mas o que torna o filme especial é que a reconstituição do crime não é apenas definidora de sua narativa, mas de sua forma. Os relatos das testemunhas e seus pontos de vista são modeladores de uma mise-en-scène refinada da diretora.

Diferente de outros filmes de tribunal, Triet em momento algum promete uma revelação total e indiscutível dos fatos. Desde o princípio, sabemos que os pares de olhos que poderiam nos servir de testemunhas são limitados. O espectador, tal como o jurí, deverá contar sempre com as versões ali narradas. Ao longo da trama, a diretora é competente em revelar novos planos e acontecimentos, que complexificam o drama vivido por aqueles personagens e tornam ainda mais difícil o apego a uma verdade inquestionável.

O trabalho de Sandra Huller é monumental. Obviamente ficará marcada pela já icônica cena da discussão com o marido, mas é em seus momentos de silêncio, onde se encontra confusa e acuada, quando busca palavras para se defender em um idioma que não domina, que a atriz revela seu maior potencial.

 
ASSASSINOS DAS LUA DAS FLORES

Ernesto Loaiza (@sejacinema)

O filme encerra-se com uma ruptura formal que atinge o espectador como um tiro no peito. Após a última mentira contada por Ernest, o filme transporta-nos a um palco, com artistas brancos narrando o epílogo do filme, na frente de uma plateia cheia, com luzes e microfones da era do rádio. Evidenciar isso, em relação com a história que acaba de ser apresentada, é assustador, pois ressalta o privilégio do espetáculo, daqueles que contam a história e da plateia. Aliás, a própria imagem da plateia torna-se um espelho da plateia real, que, a troco de alguns reais, pôde passar a tarde assistindo um filme aguardado de um diretor reconhecido, de repente até comprando uma pipoca e indo bem vestida. Ainda por cima, a aparição final de Martin Scorsese, que lê o obituário de Molly, confronta a própria ontologia do cinema, pois colocar-se frente às câmeras para anunciar a morte dela é dotar-se da responsabilidade simbólica de uma nação. Não é uma personagem que o diretor-roteirista quis matar, mas, por representar uma importante pessoa morta para a história que conta, o gesto de subir aos palcos e anunciar isso, com pesar, confere a Scorsese um momento impactante, confrontativo e didático sem ser óbvio. 

Inclusive, esse caráter transgressor de ficção e realidade pode ser reconhecido em outro instante, tão impactante quanto, que torna, aliás, Lily Gladstone como uma das melhores interpretações do ano. Refiro-me a quando Molly, definhando pelas drogas que lhe estavam injetando, olha para King Hale e diz “Você é real?”. Por alguns segundos, Gladstone consegue, ao mesmo tempo, comover com a interpretação de uma pessoa dopada, identificar a máscara de um falso amigo, e transcender sua personagem que parece, por um breve instante, visualizar a ficcionalidade da situação em que se encontra. Como um espírito que percebe estar em um lugar que não lhe pertence, Molly, revivida pelo cinema, parece identificar que está em um lugar que não deveria estar, e atinge diretamente o espectador com o impacto causado pela fricção entre ficção e realidade. A sensibilidade de Scorsese neste filme é ímpar, demonstra como este mestre diretor é capaz de fazer uma aliança entre o artificial e o realismo com muita perspicácia, principalmente tratando-se de uma história real absurda como essa.

Janaina Schequenne (@schequenne)

Assassino da Lua das Flores surpreende pelo seu tom político, porque – por um olhar mais crítico – o diretor costuma rodear temáticas e narrativas sobre ou parar a masculinidade branca (seja num tom positivo ou não). A atuação de Lilly Gladstone é o que carrega o interesse pelo filme até o final, o carisma da personagem, a sensibilidade no olhar, faz com que o público se comunique com a personagem sem que ela diga algo, em muitas cenas sua expressão nos faz compartilhar a dor. É incrível como é fácil compreender a inércia da personagem, trata-se de um processo doloroso, parecendo mais próximo do que toda pessoa sente quando coisas demais e muito complexas acontecem na vida e não se sabe como lidar, pois é preciso pensar, digerir, entender, para só então reagir. Leonardo Di Caprio também consegue arrancar um profundo desprezo do espectador com seu personagem. Porém essa conexão se perder com o tempo, no final, o interesse é só saber como termina.

O filme é poético e bem sensível, ao tratar a história de um povo etnicamente distante do diretor. Saber tratar temas assim, sem ter essa proximidade cultural, é saber respeitar as história de toda uma sociedade. Arte, fotografia, som e atuações seguem o primor da direção de Scorsese. Seria perfeito se tivesse menos uma hora, ou menos quarenta minutos. E é possível cortar uma hora do filme facilmente, não porque as cenas sejam irrelevantes, mas porque são apenas imagens belíssimas, que não adicionam ao filme. Ainda que seja uma escolha fazer o espectador sofrer, como se essa agonia não fosse acabar, tal qual passa a personagem principal; três horas e meia é excessivo, cansativo, até para um filme de herói. A pior parte, é no final do filme, o ritmo é um problema, o filme testa bastante a resistência do espectador. Menos meia hora e Scorsese passaria ileso de receber menos críticas que o Batman, em relação a isso.

Renata Serra (@renataserraa)

Em Assassinos da Lua das Flores, Martin Scorsese constrói um mundo em tela tão hipnotizante e desconcertante, tão humano e cruel, que é impossível não fazer dessa a minha estréia favorita de 2023. É difícil colocar em palavras o que a obra me passou; seria redundante tentar falar da grandiosidade de Martin Scorsese, Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, e comentar, assim como todos, da excelente performance de Lily Gladstone, uma das favoritas ao prêmio de Melhor Atriz do Oscar. É de uma maestria ter 206 minutos em um longa-metragem apresentados dentro de um ritmo constante, uma história mantida interessante em todas as suas camadas e Scorsese alcança esse feito. História essa sobre o genocídio indígena nos EUA e as entrelinhas da violência, do luto, da ganância – a brutalidade aparece na narrativa não de maneira necessariamente gráfica, mas orgânica, sempre presente nas ações e nos diálogos das personagens, escondida nos menores dos atos e exposta nas reações violentas a que somos apresentados em tela: nos assassinatos frios e também nas relações de poder, tudo abordado com a cautela que você não esperaria fosse um longa de diferente autoria. A cena final declama: na arte, todos somos cúmplices da dramatização da dor do outro. Scorsese não só assume sua responsabilidade nisto como descobre uma bela forma de fazê-lo.

Pedro Lauria (@opedrolauria)

Chega a ser desagradável a forma como Scorsese é competente em seu cinema e como ele faz o ato de filmar parecer fácil. Assim, até seus erros parecem acertos, quando comparados com outras direções. Por exemplo, se por um lado fica evidente que as mais de três horas de filmes escondem se tratarem de dois filmes bem diferentes, ao mesmo tempo, isso significa mais Scorsese. E tem algo melhor do que isso?

Lily Gladstone é uma titã – que carrega a carga sentimental e afetiva do filme – evitando que Assassinos da Lua das Flores repetisse os erros de O Irlandês. Chega a ser hipnótica sua presença na tela, fazendo com que sempre ansiamos pelas suas cenas. E ela o faz de forma sutil e sofisticada, dando mais peso, inclusive, às excelentes atuações de Di Caprio e De Niro, sem – em nenhum momento ser ofuscada por elas. Cedo demais para colocar ela no panteão de atuações do diretor? Eu acho que não.

Os memes de Absolute Cinema se encaixam bem aqui. O Assassino da Lua das Flores é cinema puro, uma obra madura, bem cadenciada, que nunca descamba pro melodrama excessivo (e seria muito fácil), e nunca recai em um cinismo ácido (que também seria muito fácil). O final, memorável, demonstra a maestria de Scorsese como diretor. Algo que poderia soar prepotente nas mãos de qualquer outro diretor, nas mãos de Martin, soam como uma conversa sincera e necessária de alguém que, já encaminhando para o final da vida, ainda é profundamente impactado pelas histórias que decide contar.

 

Ficção Americana

Ernesto Loaiza (@sejacinema)

Para um filme que critica narrativas Oscar-Bait, é hilário que todos os requisitos de um filme Oscar-Bait sejam cumpridos aqui. A premissa do escritor insatisfeito que faz sucesso com seu pior livro, apelativo e mercadológico, é interessante, mas é diluída em meio a todas as tramas tradicionais de uma família disfuncional de sempre, que a Academia adora: mãe com alzheimer, irmão gay problemático e usuário de drogas, o único, por sinal, conflitos com a namorada que acontecem seguindo o mais básico manual de roteiro, final ambíguo e com uma pretensiosa autocrítica ao cinema, etc. É realmente impressionante como o filme parece não só não ter fé em sua maior força, e a justificativa de que a obra, na verdade, tenta mostrar justamente um lado humano no que critica, narrativas que não fazem nada além de retratar vidas negras, não é o bastante para decidir fazer mais do mesmo com esta família, como qualquer outra dramédia já não fez. Considerando que Cord Jefferson estreia na direção com este filme, isso pode justificar a falta de coragem em sua sátira, pois toma um caminho simplista demais. Lembra até, de certa forma, a indicação a melhor filme de Green Book em 2018, um filme também calculado para os gostos da Academia, com o mínimo de pensamento sobre pessoas negras, que, por muitas vezes, parece ser o bastante para os votantes dessa premiação, e que, tal qual Ficção Americana, não é capaz de ir além de ser um filme meramente “fofo”.

Janaina Schequenne (@schequenne)

Chega a ser engraçado o Oscar ter indicado Ficção Americana, parece a vida imitando a arte, também é corajoso, de certa forma. Esse obviamente não é um filme vazio de significado, tal qual Monk descreve o livro “Fuck”, mas é claramente, o filme da cota negra do Oscar. Não que tenha muitos filmes negros para serem indicados, né? Mas também, porque será que isso acontece? Não deve ter muitas pessoas negras fazendo filmes? Tá cheio de pessoas negras por aí nos grandes estúdios e nas faculdades de cinema. (Caso seja preciso desenhar, contém afiado sarcasmo, tal qual o filme).

Mas e se o Oscar não o tivesse indicado? Bem, talvez, ele não chegaria ao conhecimento do grande público, portanto, não é de todo mal que ele seja indicado a melhor filme. Pelo contrário, o filme possui uma boa fotografia, um roteiro bem inteligente, atuações muito boas, e o jazz, tão sofisticado e rico quanto seu protagonista e todos os coadjuvantes. Por mais que isso pareça básico, o mais importante é o quão crítica é a história de Monk, personagem que é criador e criatura, que ao precisar lidar com seu Frankenstein, tira da sua cartola um dos mais repetitivos dilemas da sociedade atual: o racismo é inaceitável, mas a estrutura branca é inabalável. O filme traz um discurso sobre como o racismo atinge pessoas negras que já alcançaram um certo (pequeno) espaço de privilégio. É preciso agradar os brancos, até mesmo no que se diz sobre a vivência negra; é preciso agradar os brancos, para que uma pessoa negra possa ser ouvida, para que possa alcançar seu lugar ao sol. E ainda assim, ser invalidada por uma realidade que retroalimenta o racismo, enquanto as pessoas negras buscam aprender a sobreviver disso ou com isso. Essa situação cíclica, é capaz de deixar qualquer pessoa confusa com os seus próprios princípios e intenções. 

Ficção Americana é um filme divertido que sabe usar sua criticidade, até mesmo para si; já que, o filme é leve e profundo, mas sem ser triste; engraçado, mas sem ser caricato demais; levando o humor com muita inteligência e com um drama perfeitamente equilibrado em contextos cotidianos familiares. Além disso, a família de Monk é uma das melhores coisas do filme. E por causa dela, Ficção Americana, nos entrega pequenas doses de alegria em ver aqueles personagens que parecem pessoas que o espectador encontraria na rua, no bairro, sendo felizes, apesar de tudo. E essas doses de felicidade,  fortalecem o protagonista, principalmente nesse ambiente familiar / comunitário, que depois de difíceis momentos, o recepciona com acolhimento. Assim, o personagem ganha outra camada de carisma; e o filme entrega doses de alegria, capazes de preencher o coração do espectador. 

Renata Serra (@renataserraa)

Ficção Americana nos revela o que é já no título: um filme absurdamente (norte) americano. Apesar de uma pertinente crítica a uma cultura que considera qualquer arte sobre coisas importantes como arte importante, Ficção Americana cai na mediocridade ao explorar as suas duas esferas de forma rasa e tentar transformar o seu comentário social em drama familiar com toque de metalinguagem. O longa, apesar de interessante em momentos, cai na superficialidade de questões raciais e da cultura da literatura moderna, além de se tornar aquilo que critica: uma obra simplista que tenta ser mais do que é, enfraquecendo seu elo mais forte, a sátira. A cena final tenta livrar o espectador dessa sensação, mas o gosto agridoce de um filme com potencial não cumprido prevalece.

Pedro Lauria (@opedrolauria)

Devemos analisar Ficção Americana a partir de sua nomeação ao Oscar? (Mesma pergunta que faço pra Coda: No Ritmo do Coração, vencedor do Oscar de 2022). Caso positivo, provavelmente algumas críticas precisam ser feitas ao seu roteiro formulaico e a sua falta de inventividade estética/narrativa (a exceção é o final), Porém, se o encararmos apenas como um filme descompromissado – Ficção Americana se sobressai, como um comentário interessante sobre a contemporaneidade e a precificação do lugar do negro na “alta cultura” (discussão mais bem aprofundada no remake de Candyman, dirigido por Nia DaCosta). No fim, se trata de uma obra irônica – que se tornou justamente aquilo que critica – com uma pitada de charme e carisma.

 

MAESTRO

Pedro Lauria (@opedrolauria)
Alguém precisa dar um Oscar logo para Bradley Cooper. Não que ele mereça (como se isto importasse para a premiação), mas que ele pare de nos ofender com obras “oscar bait” como é o caso de Maestro. Se debruçando sobre o fato de que biografias de personagens “polêmicos” são a chave pro Oscar de Melhor Ator, Cooper nem esconde que dirige o filme com esse único propósito. Seja pelo excesso de closes em sua atuação constrangedora, seja pela tentativa de criar cenas de briga/discussão que vão cativar os eleitores da premiação (eu nem vou me aprofundar na cena patética em que o um balão de Snoopy passa voando pela janela). 

Ainda assim, o destaque negativo vai para o roteiro: o mais mal escrito dessa temporada de Oscar. Ao resumir a figura de Bernstein em sua sexualidade e na sua esposa, na dificuldade de aceitar a poligamia (interpretada por uma Carey Mulligan no modo automático) – o guião parece ter sido pensado por um jovem de treze anos fascinado pelo fato de que pessoas transam. No fim, Cooper consegue trazer às telas um Bernstein menos complexo que Lydia Tár, a personagem fictícia do filme de Tood Field.

Entre Maestro e Oppenheimer espero que, depois desse ano, Hollywood seja impedida de fazer biografias.

 

Ernesto Loaiza (@sejacinema) 

É claro que, por ter o simples acesso ao Twitter, já havia me deparado com a tão comentada cena de Bradley Cooper encenando a regência de Leonard Bernstein, na Sinfonia da Ressurreição de Gustav Mahler. Evitei assistir o trecho, além de poucos segundos inevitáveis pela curiosidade, pois, já que está tão comentada, deveria deixar para assistir o filme completo, pois o contexto geral do filme haveria de mudar minha percepção com a cena, compartilhada de maneira isolada na internet. Logo, foi uma tristeza notar que tal cena funciona como cena isolada até em seu próprio filme. Em meio a uma narrativa fraca, que não sabe se quer ser realista ou lúdica, e tampouco sabe alternar entre esses campos, com diálogos absolutamente vazios, e falta de aprofundamento passional no protagonista, acaba que essa é a única cena memorável, considero, inclusive, uma excelente cena, e listo as razões. 

Antes de tudo, deixemos de lado as rasas críticas relacionadas à “inaptidão” de Bradley Cooper em reger uma orquestra. Fosse assim, acabaríamos com a imagem da esmagadora maioria dos atores, que interpretam personagens músicos, que não sabem tocar o instrumento de quem interpretam. Sua interpretação, por mais que exagerada, é condizente com o exagero esperado de alguém que interpreta Leonard Bernstein, com longos e intensos movimentos, expressões faciais extasiadas, corpo pulsando o ritmo da orquestra. Apesar da maior parte do filme ser desinteressante, esta cena transmite a emoção que devia transmitir, a de um regente que se leva por inteiro pela música que rege, a música em si também ajuda muito na potencialidade da cena. Além disso, o momento “Rocky Balboa” em que ele dirige-se à sua esposa assim que termina de conduzir sua orquestra revela o que há de mais profundo no coração do protagonista. Como um bebê que instintivamente arrasta-se até a mãe, Bernestein, imediatamente após sua êxtase, corre atrás daquela que, independente das complicações matrimoniais, é a pessoa que verdadeiramente quer, e o olhar de Felicia, um misto de alegria e sofrimento, demonstra a reciprocidade disso. Uma pena que todo o resto do filme seja apático com suas personagens principais.

OPPENHEIMER

 

Pedro Lauria (@opedrolauria)

Eu não tenho mais paciência para Christopher Nolan. Mas isso é culpa única e exclusivamente dele. Depois de um promissor início com Insônia, Amnésia e O Grande Truque, e ao ser alçado à fama pela competente duologia O Cavaleiro das Trevas (vamos fingir que o último filme inexiste), Nolan entregou uma obra marcante e visualmente fascinante com A Origem. E ali sua carreira virou um pastiche de si mesmo. Enfileirando na sequência a bomba Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o piegas Interestelar e o tenebroso Tenet (Dunkirk sendo o último respiro) – nos resta ficar com o pedante e insuportavelmente chato Oppenheimer. O filme que vai dar o Oscar para o diretor que se acha Kubrick, mas parece uma versão cult do Zack Snyder (não a toa tem os mesmos fãs).

Enfim. É o Oscar.

Sobre o filme, não há muito o que falar para além do “Nolanismo” de Nolan. Em outras palavras: um roteiro desnecessariamente confuso e uso de efeitos especiais como uma tentativa de embelezar o vazio cinematográfico que seu cinema representa. Sendo mais específico, ressalto o arco (em preto e branco) completamente desinteressante de Robert Downey Jr. e a força que o roteiro faz para que achemos Oppenheimer uma figura complexa (e que definitivamente é, mas o roteiro falha miseravelmente em mostrar, ao abraçar a narrativa boba do “gênio polêmico”). Para não dizer que “tudo é péssimo”, ressalto a escolha da cena final – envolvendo uma conversa em específico: é cafona, porém eficiente (o mesmo pode ser falar da atuação de Cillian Murpy, inclusive).

Porém, seria uma lástima terminar essa mini-crítica elogiando alguma coisa. Por isso, gostaria de falar de um momento em específico: a cena de sexo mais constragedora que já assisti em um filme. Aliás, nem preciso falar nada. A existência dela em um filme, já fala por si só.

Ps. Seria necessário um livro pra dizer o quão nojento e abjeto é fazer um filme sobre a bomba – sem mostrar os efeitos da bomba (se não de forma figurada, em um patético discurso que tenta humanizar o protagonista). Este, certamente, é o ápice do tecnicismo vazio de Nolan – para não dizer outra coisa.

Janaina Schequenne ( @schequenne)

É óbvio, que seria demais pedir a uma homem branco americano, que seu discurso sobre um homem branco americano, em parte responsável por dizimar a população de duas cidades inteiras, fosse crítico de fato. 

É impossível questionar a qualidade técnica audiovisual de Oppenheimer. Nenhuma novidade sobre as imagens bonitas que Christopher Nolan tem o PODER de produzir, mas dessa vez, o áudio se destaca, seu uso é primoroso. A cena do primeiro teste da bomba é uma cena que irá fazer parte da história cinematográfica. Apesar dessas virtudes, é difícil entender o filme por completo, os diálogos são muito rápidos, muito complexos; são colocados em cena, apenas para parecer mais difícil e rebuscado. E o diretor-roteirista segue com o problema de não saber escrever personagens femininas. A edição é excelente, é dinâmica e interessante, pois poderia facilmente cair num marasmo para o grande público, após tantas horas de sessão de um filme de conteúdo histórico. Entretanto, o que Anatomia de uma Queda sabe fazer, criando tensão sem necessariamente preencher todos os espaços possíveis com informação, Oppenheimer não sabe fazer em alguns momentos (é movimento, é enquadramento, é cor, são diálogos intensos, um arte que contém informações demais). 

Por fim, a pior de todas as falhas do filme é que ele não saber transmitir a dor e o horror que foi o genocídio causado por todos os personagens dessa história, passa por isso numa cena mais curta do que a aquela ridícula cena de sexo. Para piorar a situação coloca como vilão, um personagem que era mais um responsável por um genocídio, como o protagonista. Além de colocar Oppenheimer como herói, a sofrida mente por trás da bomba, o herói de uma tragédia grega, fadado a um erro e uma infelicidade, apesar de sua honra e boa índole. E para piorar, sendo o favorito a ganhar o Oscar. 

 

Ernesto Loaiza (@sejacinema)

O maior trunfo de Oppenheimer é conduzir seu material base, a biografia de J. Robert Oppenheimer, da maneira mais enérgica cinematograficamente possível, e aqui destaca-se, formidavelmente, as forças da direção de Christopher Nolan e da montagem de Jennifer Lee. Previamente parceira de Nolan em Tenet, filme da carreira do diretor que mais arrisca no que tange a montagem, a jovem montadora estrutura toda a obra com pontos-chaves passionais de Oppenheimer, e não com a tradicional linha cronológica de biografias, ponto, aliás, que já entra em comunhão com a frequente predileção de Nolan em modificar a ordem do tempo. Alternando não só, aliás, entre temporalidades distintas da vida de Oppenheimer, como também entre pontos de vistas diferentes sobre a figura do cientista, o ponto de vista dele e o de Lewis Strauss, Jennifer Lee tece uma narrativa emocional imparável, que fazem as três horas de duração correrem rápidas e intensas como a situação história na qual o protagonista envolve-se. 

O dilema moral de Oppenheimer é trabalhado de maneira a se pensar que, em última instância, se não fosse ele, outro cientista estaria no lugar para concretizar os planos militares estadunidenses naquele período. Com a mesma ambiguidade, com a mesma dificuldade de encarar os frutos do genocídio em Hiroshima e Nagazaki. Nolan escolhe centrar-se em explorar o máximo da psicologia do protagonista, constrói um filme que evidencia seu entusiasmo em realizar seu projeto científico, o vazio que sente após perceber que não há glória para sua classe, a tentativa de influenciar na regulamentação de armamento nuclear, e o confronto moral que sofre naquela audiência de liberação de segurança, tudo isso seria vivido por quem quer que seja que estivesse naquela posição naquele momento, calhou de ser Oppenheimer a carregar o fardo de alterar o curso da história e, como lhe alerta o colega Isidor Rabi, tornar o auge da história da física produzir uma arma de destruição em massa. Aliás, nesse sentido individualista da obra, é mais eficaz, para o estudo de personagem, mostrar que Oppenheimer desvia o olhar durante uma exibição de fotos das horrendas consequências no Japão, do que mostrá-las. Além do mais, a exibição desse material enfraqueceria bastante a obra, já que, sem dúvida, pareceria um recurso barato para o mero choque ao espectador, já basta termos as imagens como conhecimento prévio, (imagine, por exemplo, se Zona de Interesse mostrasse imagens de arquivo do Holocausto), o filme não é sobre isso.

Por fim, elogio a trilha sonora de Ludwig Goransson que, apesar de, sim, bastante presente no filme, une-se àquele objetivo de construir uma narrativa guiada pelo passional. Seja em casos onde a música brilha sem diálogos, como em “Can You Hear the Music”, que cria uma atmosfera pesada e fascinante, como o fascínio de Oppenheimer pela física, seja em casos em que a música reforça ainda mais o estresse e ansiedade em meio aos diálogos, já estressantes e ansiosos, como em “Trinity”, durante o teste nuclear em Los Alamos,  ou em “Fusion”, quando Oppenheimer é confrontado por acusações de espionagem durante a confecção da bomba. Considero essas três áreas, direção, montagem e trilha sonora, destaques absolutos na premiação do Oscar 2024 por conseguirem construir essa energia poderosa e incessante para o filme, ademais da atuação de Cillian Murphy, que transita muito bem por essa ambiguidade moral com um bom domínio das expressões de um homem pressionado que tenta afastar-se de seu fardo.

 

OS Rejeitados

Renata Serra (@renataserraa)

Os Rejeitados é um filme simples que se sustenta no carisma da relação dos personagens principais interpretados pelo grande Paul Giamatti, a excelente Da’Vine Joy Randolph e o novato (mas ainda ótimo) Dominic Sessa. A química do trio principal estabelece o tom de um filme especial e bonito dentro de sua simplicidade: o que poderia ser mais um filme de Natal, nas mãos do diretor Alexander Payne torna-se um mensagem de aceitação e esperança reveladas em seus planos abertos, diálogos inteligentes e na relação construída entre seus personagens que, por vários motivos, encontravam-se sozinhos no feriado mais melodramático da cultura americana. 

Pedro Lauria (@opedrolauria) 

Os Rejeitados talvez seja o ápice da maturidade de Alexander Payne como diretor. Um filme bem cadenciado e profundamente equilibrado. Tanto em seu humor, cínico, quanto em seu coração. Um filme que, com qualquer deslize, fosse da direção, do roteiro ou de seus atores, se tornaria insuportavelmente piegas. No entanto, com atuações grandiosas de Dominic Sessa e, principalmente, Da’Vine Joy Randolph e Paul Giamatti é difícil não se deixar torcer pelo trio de protagonistas – mesmo que você saiba onde o filme vai dar. Se não fosse pela duração, facilmente este se tornaria um favoritaço a se reprisado em todo Natal estadunidense. E isto não é uma crítica.

Ernesto Loaiza (@sejacinema) 

Não faz muito além de um filme de comédia com amizades improváveis, fora a estética anos 70 que elabora. Paul Giamatti, interpretando o professor Paul, extrai bastante autenticidade do personagem, que o transforma por completo. Por exemplo, jamais imaginaria que o mesmo ator foi o que interpretou Rhino em O Espetacular Homem-Aranha 2. O ator acerta em cheio nos maneirismos de um professor idoso, e, em contraponto com o jovem Angus Tully, interpretado por Dominic Sessa, que parece ter saído diretamente de uma série de TV nos anos 70, cria uma dinâmica de buddy movie simples, mas comovente.

Zona de Interesse

Janaina Schequenne ( @schequenne)

Zona de interesse faz sua provocação (a banalidade do mal) e alcança seu objetivo. Ele sabe a hora de acabar, e por sorte não se torna repetitivo e cansativo. A linha entre o narrativo e não narrativo é tênue, o que importa é o que o som e a imagem provocam. Nos coloca num lugar impotência, somos meros espectadores, nada podemos fazer, além de testemunhar essa insensibilidade absurda. Seu final, pode gerar diferentes interpretações. No meu caso, entendo como a intenção de uma crítica/autocrítica levada pelo diretor.  É um bom filme, mas não veria de novo, nem indicaria aos amigos. Esse é um bom filme para estudantes de cinema, e pessoas da área, pois, existe uma bibliografia que discute a representação do holocausto no cinema, do uso dessa tragédia como narrativa, como drama. 

Esse é um filme que seguindo um pouco do que se discute sobre essa representação, traz para a tela uma versão que respeita a memória das vítimas dessa tragédia. Mas, é preciso sinalizar o quão infeliz é o atual contexto histórico, não há como deixar de pensar que sua indicação tem proximidade com um discurso sionista, com o soft power. Ainda que o filme não tenha intenção de sinalizar uma discurso pró-Israel, o contexto atual, a quem tem criticidade, faz inferir que talvez esse seja um filme indicado pelo seu alinhamento político, por fazer parte desse capital cultural. O soft Power como sendo usado para lembrar a “maior tragédia que já aconteceu no mundo” (enquanto outras tragédias, principalmente relacionadas aos povo negros e suas diversas colonizações, são ignoradas, porque claramente lhes falta poder e relevância, ou talvez influência sob uma indústria). 

Renata Serra (@renataserraa)

Se o enquadramento fosse outro e o som em tela estivesse silenciado por uma música não diegética, Zona de Interesse não seria um filme tão cruel e indigesto. Jonathan Glazer se sustenta no argumento da banalidade do mal para construir uma obra cinematográfica aterrorizante; a cumplicidade de todos os personagens no genocídio nazista parece ser mero detalhe em suas vidas – é preciso construir um muro para afastá-los da crueldade dos campos de concentração, os filhos saem da água quando as cinzas dos mortos a infestam e isso não é o bastante para fazê-los ir embora, pois as flores crescem apesar disso. As imagens da rotina da família em vista dos horrores que acontecem, literalmente, do outro lado do muro e o distanciamento em câmera trabalhado por Glazer transformam uma vida familiar com brigas conjugais, presentes de aniversário e visitas de avó em algo pungente e impiedoso. 

Não só o filme trabalha com a banalidade dos personagens em tal situação, mas também transforma o espectador em cúmplice dessa realidade. Assistimos em choque, com uma sensação de terror, mas não fazemos nada; não podemos fazer nada – o cinema como arma de denúncia e impotência. Glazer utiliza da perversidade do cinema para expor a perversidade do nazismo. O uso de imagem e som nunca foi tão assustador.

Pedro Lauria (@opedrolauria)


É um filme ame ou deixe-o. Ou você é completamente absorvido pela narrativa, ou a obra de Glazer pode surgir como profundamente pedante. Para mim, felizmente, foi o primeiro caso. Se utilizando do som de forma espectral, Zona de Interesse me cativou desde o seu primeiro minuto, quando somos apresentados a uma tela em preto em meio a sons guturais. A hiperestilização não se resume a esse momento inicial – ela é pontilhada durante o filme de forma bastante equilibrada, contrapondo a aparente (e falsa) banalidade de suas cenas. Como qualquer uso excessivo de um efeito, é capaz do espectador não comprar as sequências em que uma menina anda pela floresta, totalmente em negativo, ou a montagem envolvendo diversas flores e a cor vermelha. Para mim, isto adiciona um tom de poesia necessária – embora bruta, e bem pouco sutil – a um filme seco e direto ao ponto.

Imageticamente, mais do que o uso (bem óbvio) dos planos de profundidade para mostrar a existência do campo de Auschwitz além muro, são os ângulos retos e composições que lembram um filme de Jacques Tati, que tornam Zona de Interesse uma das obras mais interessantes dessa décadas. Você pode achá-lo entediante, óbvio ou piegas. Mas não pode se negar o poder de seu som e imagem (e estes não são os pilares do cinema?) – e isto é o mais importante em um filme cuja principal mensagem é: não se esqueçam. 

 

Ernesto Loaiza (@sejacinema) 

O filme se veda para explicitar o mínimo possível da trama e do contexto histórico, devido ao desinteresse do núcleo de protagonistas no que ocorre do outro lado do muro, enquanto o diretor extrai o máximo possível, por meio de seu domínio audiovisual, do horror que tentam acobertar. É um embate que gera tensionamentos a cada plano, a cada detalhe, ao longo do filme inteiro, já que o que não é visto assombra tudo o que se vê. Por sinal, o trabalho de som deste filme é crucial para compreender a experiência de Zona de Interesse, tanto o de design e mixagem de som quanto o da trilha sonora, mais um ótimo trabalho de Mica Levi. O som dos gritos abafados do outro lado do muro, dos soldados agredindo os prisioneiros, da incineração coletiva, tentam invadir o espaço da família Hoss, que é incapaz, ou, em alguns casos, tenta ser, de se importar com o que ocorre do outro lado. Sem a visão do que ocorre, resta à audição, e até mesmo ao olfato, como percebe a mãe de Hedwig, fazer com que se note o horror ao redor — o que, aliás, é importante de se notar até hoje.

 

 

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