Crítica escrita por Marcelle Souza, estudante de cinema e audiovisual da UFF.

Em Vidas Passadas (2023), o longa romântico de estreia da cineasta coreana-canadense Celine Song, com um ritmo delicado, intimista e avassalador, aborda a conexão entre as pessoas que poderíamos ter sido e amores que poderíamos ter tido se escolhas e renúncias fossem diferentes ao longo da vida, passeando por décadas e hemisférios. “Se você deixa algo para trás, você também ganha alguma coisa”: é a declaração que a mãe da protagonista Na Young faz sobre a imigração da família da Coréia do Sul para o Canadá, iniciando a trama de Na Young com Hae Sung, seu amor de infância que, do outro lado do mundo, só existe em memórias e no afago que essa conexão faz em seu peito.

Aos 12 anos, Na Young e Hae Sung são namorados (não por entenderem os atributos da palavra no contexto social, mas por ser o rótulo que define a cumplicidade e amor de um pelo outro). Entretanto, com a imigração da protagonista para o Canadá e posteriormente Estados Unidos, Na Young deixa para trás não apenas seu primeiro amor, mas também sua própria pessoa, que agora passa a se chamar Nora e atenua cada vez mais o fio invisível que a liga à quem ela era na Coréia do Sul. Ao se tornar Nora, o filme trata da imigração da protagonista como uma espécie de “teoria do caos” ou “efeito borboleta”, de forma que uma singela mudança na maneira como os eventos ocorreram em sua vida pudessem causar grandes mudanças em seu futuro. Se ela ainda fosse inteiramente Na Young, seus desejos quanto à vida profissional de dramaturga não seriam palpáveis, todavia se  for completamente Nora, suas origens e um grande amor ficam retidos no outro lado do globo.

Durante a busca da personagem por se reconectar a um passado muito mais distante emocionalmente do que temporariamente, Nora reencontra Hae Sung nas redes sociais 12 anos após deixar o continente asiático. Agora, aos 24 anos de idade, Nora encara as adversidades durante a construção da própria carreira na dramaturgia e Hae Sung estuda engenharia após cumprir o serviço militar, os antigos namorados passam a conversar todos os dias pela internet em fusos e países diferentes. Dentre os diversos elementos que compõem Vidas Passadas, a manifestação da distância em suas diferentes formas –  fisicamente, nos silêncios que compõem os diálogos, nas mãos que mais adiante no filme se encontram mas não se tocam ou no incomunicável em palavras mas expresso em olhares – é um dos aspectos mais belos da direção de Celine Song.

Com a imutável conexão, a paixão entre os dois se restabelece durante os meses de contato pelas redes sociais e Hae Sung conhece um novo velho amor, visto que seus seus afetos conheciam apenas Na Young e agora ele tem a oportunidade de se apaixonar também por Nora, estendendo o elo com ambas as versões da protagonista. Contudo, Nora decide se afastar de Hae Sung mais uma vez por se enxergar num dilema entre o desejo de voltar para a Coréia do Sul para reencontrá-lo e o peso das renúncias que fez com sua família ao imigrar para estar mais próxima da realização de sonhos profissionais. Assim como linhas perpendiculares, Nora e Hae Sung se encontram em determinado ponto para em seguida percorrerem caminhos separados novamente, de forma a tornar o filme agridoce pela extrema semelhança à vida real em relação aos caminhos que somos levados a percorrer sem prévia determinação de onde eles poderão nos levar.

Posteriormente à quebra de contato, Nora vai para um retiro de escritores com o objetivo de imergir em seu trabalho e conhece Arthur, por quem se apaixona e se casa. O comum a se esperar de clássicos triângulos amorosos seria que Arthur fosse um personagem detestável pelo público por servir como barreira para o desenvolvimento da história dos antigos amantes, mas é justamente pela construção de alguém tão compreensível e afetuoso, um parceiro que entende o saudosismo de Nora e o força da intangível conexão dela com Hae Sung, que o roteiro de Celine Song é capaz de traduzir amorosidade em imagens em movimento. Arthur se mostra então um personagem sensível que consegue amar Nora para além do que ela é para ele, cedendo espaço para amar as coisas que a tornam ela mesma e, diferentemente de Hae Sung, é com Na Young que Arthur tenta se relacionar. Durante o filme, Arthur confessa para a protagonista que nas vezes que ela fala enquanto dorme é sempre em coreano, admitindo sua dificuldade e medo em se conectar com quem Nora era na infância ao dizer “você sonha em um idioma que eu não entendo”.

Mesmo com a entrada de Arthur na trama, a sensação de que Hae Sung e Nora são destinados a ficarem juntos permanece, de maneira que após mais doze anos – agora ambos com 36 anos de idade – eles se reencontram em Nova York. A escolha da diretora em conjunto com a fotografia de intercalar entre plano-contra-plano no momento em que Hae Sung e Nora se encontram pessoalmente, é genial à medida em que cada um ainda está imerso em seu próprio mundo, sendo confrontado pela realidade de olhar no olho do outro após anos de rezas exasperadas por esse momento em conjunto a resquícios de memórias apaixonadas.    

O reencontro de uma conexão que sempre esteve presente, apenas camuflada por questões da vida, é o clímax de uma história de amor que não é previsível de um fim, não necessariamente romântica até seu último instante, mas repleta de uma ternura e vínculo que se estende para além de quem são ou que ainda vão ser, conectando Nora e Hae Sung não somente um com o outro, mas com eles mesmos. De instância nada sobre sentimentos é dito, mas com as incríveis performances de Greta Lee (Nora/Na Young) e Teo Yoo (Hae Sung), a conexão de ambos é transmutável e manifestada através dos afetuosos olhares e gestos corporais, de forma que o espaço ocupado pelos silêncios durante o encontro é mais uma das singelas vezes que, como fora do universo ficcional, humanos se amam sem palavrear. Com Hae Sung, Nora se é por completo e resgata Na Young de dentro de si, internalizando-a não em um passado mas em uma promessa de que as escolhas que fez não foram apenas escolhas da sua versão imigrante. Com Nora, Hae Sung enxerga uma crença no amor que ele mesmo é capaz de sentir, de maneira que o elo que os une, também diz respeito à sua própria capacidade de se abrir com os outros.

Quando Arthur e Hae Sung finalmente se conhecem, a insegurança de ambos para com o que o outro representa na vida de Nora é perceptível, ainda assim os dois não poupam esforços para serem solícitos. O roteiro de Celine Song tem a habilidade de em momento algum transformar a relação em um triângulo amoroso pois a forma que o espectador passa a observar a relevância e a diferença da conexão de cada um com Nora, o filme acaba se tornando um memorando à expressão “e se”. E se Nora nunca tivesse deixado a Coréia do Sul, ela e Hae Sung teriam se casado? E se na verdade o motivo de Hae Sung e Nora terem conseguido manter essa conexão por tanto tempo seja por que eles não convivem? E se Nora está com Arthur, será que Hae Sung encontrará uma conexão como a deles? São alguns dos questionamentos que Vidas Passadas apresenta com maestria, revelando que embora exista o amor da sua vida, também existe o amor para sua vida.

Em síntese, o debute da direção de Celine Song com Vidas Passadas é um relicário para todos os amores que existem em alguma linha do tempo e espaço diferente da que é vivida. Com diálogos simples na mesma medida que carregados de emoção, Vidas Passadas entra para a categoria de filmes tão intrínsecos às realidades que vivemos que se tornam parte de quem somos, e com um olhar técnico tão delicado, desde a montagem em paralelos à mise-en-scène intimista, invade a academia cinematográfica reiterando que tecnologias avançadas de produção não é critério para filmes excelentes. Assim, Vidas Passadas é a mais genuína representação das conexões humanas fadadas ao encontro, mas não ao destino.

Ir para o conteúdo