O longa-metragem, desde sua produção em 1974 até seu relançamento em alta resolução agora em 2025, é uma alegoria brasileira, patriota e crítica a si mesma. Assim, as várias metáforas, os simbolismos recorrentes e a construção quase documentarista fazem com que percebamos que o Brasil não é mais a “virgem dos lábios de mel”, mas sim um corpo que corre atrás de um hotel de caminhão. Porém, ainda é Iracema.

Iracema- Uma Transa Amazônica (1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, apresenta um drama road movie (filme de estrada)  em um estilo que combina documentário e ficção. A obra foi censurada pelo regime militar até seu lançamento, em 1981. Mais tarde, o filme foi considerado, pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Agora, no dia 24 de julho, a distribuidora GULLANE+ estará relançando o filme em alta resolução nos cinemas brasileiros, para reforçar a mensagem do longa, que ainda se faz fresca nos dias atuais.

Numa fotografia cativante, pela presença inevitável de brasilidade e crueza na escolha de planos, somos apresentados não a personagens, mas às realidades. Vemos muitos semblantes, músculos magros marcados pela vida e rotina. Vemos sobrancelhas tensionadas, um homem tomando banho no meio de uma praça. Vemos, portanto, um recorte da realidade brasileira nortista. 

Conhecemos, então, Tião “Brasil Grande” (Paulo César Peréio), um sulista, autodeclarado patriota, claramente trambiqueiro, malandro e vivido. Vemos, logo no início de suas falas, que não valoriza o Brasil e suas riquezas como parecia valorizar, mas, sim, dá valor ao idealismo pautado pelo regime na época, que esbanjava o otimismo de um Brasil que estaria se formando. Endeusando seu trabalho e colocando-o acima da natureza, vemos Tião em um diálogo com um paraense em que, enquanto o local diz que a natureza é mãe, ele rebate, falando que seu caminhão era a verdadeira natureza. Com adesivos colados na lataria que dizem grandes lemas ditatoriais — como “Brasil: ame-o ou deixe-o” — fica claro quem é o personagem, um ufanista que não ama o Brasil, mas ama o que o país poderia dar pra ele: poder e dinheiro. Aos poucos, a história vai se aproximando de uma menina com traços indígenas e semblante inocente. Somos apresentados à Iracema (Edna de Cássia), uma menina de 15 anos que se prostitui em troca de caronas com caminhoneiros por toda a região norte. Iracema não vê mais perspectiva de vida fora da prostituição. Há um momento em que esbarra na mudança do seu cenário, mas, mesmo no auge da adolescência, já se considera velha demais para recomeçar. Então, se sente forçada a se acomodar na venda do seu corpo. Ainda é muito inocente, sem muitas maldades, a sua vivência de rua ainda não extinguiu sua realidade infantil. A menina, então, se encontra com Tião em Belém, enquanto a cidade se prepara para o Círio de Nazaré. O caminho dos dois se cruza. Ao desenrolar da história, suas construções individuais os forçam a distância. Tendo esses dois antagonistas, por um momento, como “casal”, fica escancarada que a desesperança de um retrato cru do Brasil, representado pela menina indígena que se considera já perdida em relação ao mundo, não é complementar com uma representação do patriarcado ufanista, que destrói em busca do benefício individual, que Tião representa. 

Como síntese da nossa nação, o filme nos induz a pensar qual o lugar do espectador, já que, ainda que a sua construção passe longe de ser ficcional, nós sabemos que a trama principal é roteirizada, mas todo o entorno é real, sem preparação ou polimento. Não existe a preocupação com figurantes que se espantam ou se encantam com a câmera e a encaram, quebrando uma – nunca existente – quarta parede. Aqui, o objetivo é misturar o real e o imaginado. Até no processo de desenvolvimento, essa mescla entre o roteiro e a real vivência se faz presente. Com a ideia partida de uma análise em uma viagem, um dos diretores levou filmes em película de beiras de estradas e tudo que seu olhar artístico capturava delas. Assim, conseguiu a produção alemã presente no filme, com a condição dessas cenas gravadas previamente estarem presentes no corte final. Tudo é muito real. Vemos queimadas enormes, trabalhadores cansados — e isso cativa ao tentarmos entender aquilo que não é mostrado: as violências que essas meninas da beira de estrada vivem a cada dia, as vidas que são interrompidas e destruídas pelo desmatamento e pelo mau uso dos recursos do meio ambiente. É um filme sensível e valoroso, que canaliza sua energia em te perguntar aonde você entra nessa história. Com uma trama de assuntos tensos, mas um ar de serenidade e cotidianidade na construção do filme, um sentimento agridoce é deixado ao rolar dos créditos. Não sabemos o destino da menina, nem ela. Mas sabemos que, onde ela está, ninguém está lutando por ela e por sua dignidade. E, se nada mudar, estará presa nesta vida para sempre. Em contraponto, quem fará algo pela mudança?

Uma cena no meio do filme traz uma camada profunda de reflexão: Iracema vai assistir um espetáculo circense de uma menina que é apenas cabeça, sem o corpo. Fica, então, uma dúvida ao analisarmos o olhar da menina: será que ela seria mais feliz sem seu corpo? Sendo só cabeça, será que ela ainda seria enfeite de caminhão em caminhão? A quem pertence seu corpo? Esses questionamentos são a coroação do filme como obra-prima. São afrontosos à ditadura, que não projetava na Amazônia uma humanidade, e sim lucro: venda de trabalhadores quase como escravizados, corpos que são prostituídos e diminuídos a carne. Tudo isso é artisticamente entrelaçado com a realidade no filme. Vemos a venda de trabalhadores para fazendas estrangeiras e a constante desvalorização do povo que ali vive e nasce. A remasterização traz, então, novos questionamentos, mas com a mesma afronta: o quanto evoluímos? A estrada Transamazônica, que é elemento central do filme e pauta relevante na década de 70, ainda não foi terminada. Ainda existem altos índices de prostituição infantil no Norte, e queimadas ilegais ainda são cotidianas no cenário brasileiro. Tião ainda segue vivo, agora não mais na estrada, mas em um parlamento, ditando quem é o corpo que sobe no caminhão e quem é o corpo que o dirige.

Fica, então, para o cinema resgatar a memória de algo que caiu no esquecimento. Iracema – Uma Transa Amazônica é mais que um filme: é um aviso que grita no passado, presente e futuro. É um filme político, pois imprime o que foi uma pátria esmagadora à mátria brasileira num corpo indigena, infantil e feminino.

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