Crítica escrita por Edeizi Monteiro Metello.

Sinopse: Rodado ao longo do ano de 2022, o filme acompanha de perto os meses turbulentos do período eleitoral que culminaram na invasão do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF, no dia 8 de janeiro de 2023. Através do olhar e da vivência de alguns personagens envolvidos no processo das eleições, mergulhamos num Brasil de tensão e expectativa, onde coexistem realidades paralelas, que têm dificuldade de se enxergar mutuamente. Um registro de um momento na história do país onde a democracia esteve seriamente em jogo.

Tela escura. Uma voz pergunta se a cineasta é de esquerda ou “do bem”. Um comentário moralista seguido de imagens dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. É assim que No céu da pátria nesse instante (2023, Sandra Kogut) começa: irônico e doloroso.

Há muitos cortes secos, os quais combinam com a agressividade da tentativa de golpe e com a separação abissal entre a esquerda e extrema-direita, representada na obra através de pessoas comuns em seus respectivos cotidianos.

Reassistir aos acontecimentos (assumindo que o espectador já tenha os visto e não estava alienado ou se encontra em uma temporalidade na qual não foi possível ver essas imagens antes desse filme) pode ser bem doloroso. Tanto pela proximidade temporal dos fatos, como pelas consequências seguintes ainda estarem em curso. Além disso, tendo visto as imagens anteriormente ou não, a atmosfera de tensão é reforçada pela trilha sonora, com música de suspense que acompanha as imagens dos ataques.

Essa tensão não é resolvida até o fim do filme.

O documentário, ao ser construído em torno de acontecimentos que levaram aos atos golpistas, acaba sendo bem educativo. Não há dúvidas sobre o período retratado por aquelas imagens e pessoas que falam, e há explicações sobre o processo eleitoral. Pode ser didático, por vezes óbvio, mas em uma era de facilidade de propagação de desinformação, torna-se necessário dizer o óbvio. Sim, as urnas eletrônicas são seguras. Sim, “há 26 anos o Brasil utiliza urnas eletrônicas em suas eleições. Nunca houve fraude comprovada”.

Outro recurso para construir tensão é a utilização de cenas muito barulhentas (como as do dia da tentativa de golpe) seguida de um silêncio e uma tela escura. É um corte rápido que traz um impacto imediato.

Cada personagem revelado é um convite ao espectador para entrar no seu cotidiano. Muitas vezes, eles não estão falando diretamente com a câmera (ou com quem está atrás dela), apesar de isso ocorrer em momentos pontuais. Mulheres e homens de diferentes idades e profissões são introduzidos de forma alternada, cada um representando um lado do espectro político ao qual estão alinhados, portanto, cada um com uma realidade diferente.

Isso também acontece com o recurso de voice over da pessoa que tem sua imagem de cotidiano, mas não está diretamente falando na cena. Essa estratégia dá a sensação de ficar muito próximo ao que a pessoa sente, pois ela fala livremente sobre seus medos em muitos casos.

A realidade na qual as pessoas que se alinham à extrema-direita estão é ilustrada através de imagens de cultos de igrejas, caminhoneiros, orações e camisetas amarelas, bem como falas delas mesmas, sem interrupção ou questionamento (sendo exceção o final), o que ilustra bem a temática identitária que permeia suas vidas, já evidenciada por Jessé Souza em relação a esses grupos.

O documentário avança no tempo, retratando o período de proibição de porte de arma e uso de celular nos locais de votação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). É possível ver o treinamento de mesários e a apreensão que permeava esses ambientes, devido ao medo de uma escalada de violência. Ao mesmo tempo, há a figura do comerciante, que lucra com a venda de itens temáticos de candidatos à presidência.

A tensão continua ao mostrar a preparação das urnas eletrônicas para a eleição de 2022 com uma música de suspense.

Há um trecho que se passa em uma escola, no qual estudantes aprendem sobre o processo eleitoral, que também cumpre uma função de explicar ao espectador como funciona o processo eleitoral.

É interessante notar que, ao mesmo tempo que o documentário se propõe a mostrar as duas realidades, aquele que tentou desmantelar as instituições democráticas não tem o privilégio da imagem, sendo apenas uma voz distante dizendo algo absurdo, o que é extremamente necessário para não dar palco para quem está obcecado em espalhar desinformação. 

Também é interessante ver os próprios personagens sendo incoerentes em suas próprias falas, como quando o pastor diz para não pensar em questões políticas e a câmera mostra pessoas sentadas nas cadeiras, vestindo claramente o identificador de grupo: a camisa amarela. É uma dissonância, uma remoção da realidade, como se identificar com ideais conservadores não fosse inerentemente político.

A tensão também é reforçada pelo clima constante de violência, seja demonstrado através de um comentário sobre carros blindados, seja o comentário sobre uso de fogos de artifício para abafar barulho de disparos de armas de fogo.

É igualmente tenso assistir novamente ao processo de apuração dos votos, com a apreensão das pessoas que acompanharam a apuração, seja do primeiro ou segundo turno.

Ver imagens das pessoas que se alinham à extrema-direita vai ficando cada vez mais trágico, conforme os discursos ilusórios sobre ameaça iminente vão aumentando.

Incidentes do dia da eleição como compra e venda de votos são mostrados. Fica nítida a dificuldade de lidar com essas ocorrências, e como essas e outras técnicas de sabotagem aplicadas na eleição são prontamente ignoradas pelo lado que não aceitou perder em favor de uma narrativa mágica como a de uma suposta “caixa preta” na qual estão os “verdadeiros” resultados das eleições.

O uso de entrevistas é bem pontual e restrito a certos momentos. Há muitos personagens falando por si mesmos, seja para falar sobre o que eles estão fazendo, falando entre si para se organizar ou comunicar algo. Isso os coloca em uma posição privilegiada de quem fala e precisa ser ouvido.

Por isso, quando ocorrem entrevistas no final do filme, logo depois do contexto do ataque e do que havia acontecido logo depois, é chocante e triste de assistir. A entrevista causa um choque; é o confronto de uma outra voz, fora de câmera, com uma das que se autoafirmaram o tempo todo. O entrevistado parece acreditar em narrativas que nem ele mesmo tem certeza. Ele tem absoluta convicção de algo que não é possível de provar concretamente, mas que é fácil de acreditar. Ele usa do seu poder de fala tanto para dizer absurdos como para, ao mesmo tempo, expor a todos sua extrema confusão.

Esse documentário teria acabado dessa forma trágica se não fosse a excelente escolha de música para fechamento e créditos, a qual dá um pouquinho de esperança. E esperança é extremamente necessária em tempos tão nebulosos, no contexto desse céu capturado e imortalizado neste momento da história. Abriu-se um tempo firme, mas não ignoremos as nuvens.

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