O novo filme de Anna Muylaert, A Melhor Mãe do Mundo, chega aos cinemas dia 7 de agosto, revivendo seus tempos de Que Horas Ela Volta ao mergulhar mais uma vez em uma história simples, mas muito real de, não uma, mas centenas de mulheres brasileiras. 

Na obra, Gal, vivida de maneira carnal por Shirley Cruz, é uma catadora de lixo de São Paulo que foge de casa com seus dois filhos, depois de ser violentada pelo homem com quem havia se juntado. Trata-se do sempre excelente Seu Jorge. 

Gal é uma mulher batalhadora, perseverante e brutalizada pela vida, mas, acima de tudo, real. Gal é uma mulher real, brutalizada pela vida, e, por isso, a composição de Shirley procura se afastar daqueles símbolos tradicionais de virtuosismo feminino que permeiam o imaginário social e são tão comuns na ficção. Gal demonstra, em seu olhar, uma expressão constante de tensão. Suas falas são entregues de maneira sussurrada e breve, como quem diz só o que precisa para resolver as situações o quanto antes. 

Em um plano que imprime perfeitamente essa idéia, Gal está passando com a carroça por debaixo de um viaduto. Ela é filmada em plano aéreo zenital, fazendo-a quase desaparecer em meio aos carros, Ela conta sobre uma pessoa atravessando algo muito maior que ela, um fluxo constante que continua fluindo com ou sem ela. E, da mesma forma, ela segue, com ou sem aquele fluxo de carros, podendo ser atingida a qualquer momento. 

Mas, na presença de seus filhos, ela se desarma de suas defesas e encontra neles a força para cultivar alegria em qualquer lugar, desde almoçar quentinha no meio-fio até transformar uma piscina em um chafariz. Tão logo, a cidade de São Paulo se transforma em palco de uma verdadeira jornada de aventura. Nossos heróis conhecem feiticeiras, enfrentam monstros e acampam em florestas sombrias – uma jornada criada para nos fazer remeter às histórias de fantasia em que tudo faz sentido e o final é sempre feliz, tal qual Gal, distraindo seus filhos das mazelas da vida.

Só a presença de seu parceiro Leandro, porém, é capaz de lavar seu sorriso de imediato. Não vemos o rosto de Seu Jorge até o terceiro ato, e antes disso, seu personagem só se manifesta por ligações constantes à Gal, cujos toques de celular são inseridos abruptamente no meio das cenas pela equipe de som, de forma tão inconveniente e invasiva quanto Leandro. Essa constante presença fantasmagórica cria um estado de tensão constante, nos lembrando que o perigo está além da tela.

Esse talvez seja o sentimento mais marcante da obra: o de medo e perigo constante. O perigo do homem – dentro e fora do ambiente familiar -, mas também de uma idéia de família que legitima a violência e que, por isso, pode vir de qualquer um, mesmo que aliado. Acredito que isso promova, seja da maneira que for, um sentimento de desconforto no espectador, sentimento esse que é uma das maiores armas do filme, e é talvez a maior do cinema enquanto arte.

O desconforto é um motor de transformação, para o bem ou para o mal. Nesse sentido, A Melhor Mãe do Mundo, acredito eu, reconhece a dor de quem passou por situações parecidas e sentiu na pele essa agonia. Também, é uma oportunidade de reflexão para homens cujo desconforto pode ter vindo de uma sensação de ter sido mal representado ou generalizado. Para esses, é bom lembrar que o machismo quase nunca é mostrado em tela. Ele é uma presença constante e enraizada, e, às vezes, é preciso um pouco de seriedade e atenção para ouvir o seu toque. 

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