Crítica escrita por Edeizi Monteiro Metello.

Sinopse: Alma, sozinha em sua casa imensa, e Mina, mãe solteira de um conjunto habitacional em outra cidade, organizaram suas vidas em torno das visitas que fazem aos respectivos companheiros presos. Quando as duas mulheres se encontram na antessala da área de visitas, uma amizade improvável se inicia.

Em um plano invertido no qual Alma Lund (Isabelle Huppert) está refletida no teto de espelhos da floricultura, distorcida, distraída, A Prisioneira de Bordeaux (2024, Patricia Mazuy) se descortina, introduzindo o mundo desequilibrado da protagonista, que compra flores e leva um presente para sua amiga que ainda vai aparecer.

Esse desequilíbrio introduzido na montagem, temporalmente distinto do restante da estrutura e contextualizando a cena do início apenas próximo do final, é o que vai ser carregado ao longo de toda a narrativa.

O filme constrói uma atmosfera cotidiana. A câmera observa as personagens, sem pressa, sem movimentos bruscos. O que se conhece dos personagens é revelado aos poucos, e até mesmo seus nomes são revelados apenas mais tarde. Isso gera um certo suspense, pois por mais que o espectador já saiba quem são Alma e Mina, a imprevisibilidade e o desconhecimento sobre ambas as personagens o levam a se concentrar e não perder nenhum movimento vindo de qualquer uma das duas.

Há muitos silêncios. Pouco é falado. Muito é construído através do simples ato de andar, observar, dirigir. Até a música que entra desaparece subitamente, dando espaço ao silêncio e aos sons do ambiente.

Mina Hirti (Hafsia Herzi) surge não pela visão primeiramente, mas sendo ouvida. Uma voz que reclama fora de quadro, por alguns segundos, sem rosto. Comparada com a apresentação da primeira personagem, esse estilo de aproximação causa um certo estranhamento, e é esse lugar distante, do outro, do diferente, que Mina ficará durante toda a narrativa.

O filme tem uma predominância de planos mais distantes, o que reforça essa sensação de uma câmera, um olhar que apenas observa. Os planos próximos são utilizados em momentos pontuais, para enfatizar as expressões faciais das personagens, que são bem comedidas.

A casa enorme de Alma só aumenta a solidão que ela sente. Ela sempre aparece muito pequena no meio de cômodos e móveis enormes. A iluminação azul utilizada reforça a tristeza e a sensação de abandono que ela sente, e isso vai se esclarecendo cada vez mais conforme é revelado que seu marido foi preso e o relacionamento dos dois não ia bem. A solidão é representada não somente pelas cores e câmera distante, mas pelo pouco ruído que acontece quando ela está em casa.

O mesmo recurso é utilizado para a casa de Mina, só que sua solidão é diferente. Enquanto Alma se sente sozinha por ter sido traída, por ter abandonado seu sonho de ser dançarina, pela ausência física do marido, pela vida vazia e de aparências que ela mesma leva, a solidão de Mina é de invisibilidade, do olhar de desconfiança com que se olham os estrangeiros, da maternidade repentinamente solo, do medo de ser uma mulher sozinha em um local que a qualquer momento pode negar-lhe a moradia, a segurança e a paz.

O filme busca um diálogo com a situação real de imigrantes que buscam em outro país uma nova vida, uma outra oportunidade para viver e, no caso de Mina, cuidar da própria família. Porém, não se resume a isso, e o discurso principal é de uma amizade improvável entre uma mulher privilegiada e uma mulher em situação de vulnerabilidade repentina.

O privilégio de Alma em relação a Mina é ressaltado pelo fato de que o marido de Alma bebeu e dirigiu, e logo consegue um bom advogado para ser liberado, enquanto o marido de Mina não tem qualquer previsão e a própria é ameaçada diversas vezes, sendo perseguida até ceder e pensar em um plano para conseguir o dinheiro de volta, para compensar o crime que seu marido cometeu.

Para reforçar que o mais importante nessa narrativa é a amizade entre as duas, os maridos são somente citados em comentários, e aparecem de verdade apenas mais de 40 minutos após o início do filme.

Mina é tão desconectada do marido e tão fortalecida na presença de Alma que ele não fica sabendo que ela havia se mudado para Bordeaux, de Narbonne. Isso só mostra o quanto a amizade de Alma é importante para Mina, e vice-versa. Não só isso, mas Mina confia a Alma o cuidado das crianças, mesmo quando Alma prejudica a educação que Mina tenta dar aos próprios filhos. 

As duas se observam muito. Há um acordo invisível entre as duas personagens, uma compreensão de uma da outra que nunca é dito. Mina até espera que Alma a perdoe por orquestrar o furto de seu quadro favorito, sem ter qualquer discussão prévia com ela, e, apesar da reação imediata de Alma para que Mina vá embora, Alma guarda algum remorso e ainda liga para Mina. Essa reação prova que Mina estava correta em relação a Alma, sem que as duas verbalizassem o que estavam sentindo.

O que parece sustentar o casamento de Alma é justamente o quadro com colagens que ela mostra à Mina. O quadro parece ser incompreensível para seu marido, Christopher (Magne-Håvard Brekke), no sentido de não compreender qual valor sentimental aquele quadro tem, tendo sido comprado apenas para apaziguar os ânimos entre o casal em mais uma crise. Mas o quadro, cheio de recortes e colagens, representa o mundo interno de Alma, e tudo aquilo que ela gostaria de ter sido. É o único quadro que ela apresenta a Mina dando todo o contexto, e algumas vezes se retorna a esse quadro para que ele seja observado novamente. O quadro representa Alma se abrindo verdadeiramente para Mina, e Mina entende o valor sentimental desse quadro, a ponto de atribuí-lo o valor mais alto dentre todos os outros quadros e obras de arte presentes na casa de Alma. O quadro, a partir de Mina, deixa de sustentar o casamento de Alma e passa a sustentar a relação entre as novas amigas, e por isso é tão ofensivo para Alma que Mina colaborou com seu roubo. É o mundo interno de Alma que Mina se dispôs a vender. As duas não podem mais continuar juntas por isso.

A relação de Mina com o marido parece mais física do que qualquer outra coisa. Não é recompensadora, Mina não parece estar fazendo mais do que alguma obrigação, algum compromisso dela mesma com um papel que ela tem que servir. Nesse sentido, a relação de Alma com seu marido é ainda mais fria e frustrante. As duas são capazes de serem elas mesmas apenas quando estão juntas.

Alma muda com o contato de Mina. A casa que antes predominava o azul ganha tons de amarelo. Até ela mesma começa a usar um casaco amarelo e mais cenas com iluminação amarela aparecem após a convivência diária com Mina, o que é agradável de se ver.

O filme é imprevisível como Alma é em relação a Mina. Não dá para prever até onde as duas vão, e não há qualquer certeza de quanto tempo a relação vai durar. Por isso, ele é um filme mais voltado para a experiência de sentir a amizade das duas do que ter alguma resolução.

Porém, há muito mais do que uma mera experiência, porque tanto Mina quanto Alma mudam fundamentalmente.

Mina destrói a amizade devido a uma ameaça e retorna à sua cidade, mas sente-se arrependida de ter traído Alma. Ter Alma como uma amiga parece ser algo que ela queria, mesmo ela não pertencendo, o que fica muito claro no contraste entre ela e os amigos de Alma, que a veem como uma “exótica”, ao ponto de fetichizar os filhos dela e perguntam se ela vai substituir Cristina (Jana Bittnerová), a empregada eslovaca. Mas, ao retornar à sua cidade, mesmo em meio à dor, ela guarda dentro de si uma experiência de ter sido verdadeiramente vista e amada, ainda que por um breve período. Infelizmente, a relação estava pendendo ao desequilíbrio desde o início, e ambas não podem ficar juntas.

Pelo lado de Alma, ela se sentia incompleta devido à ausência de conexões, e Mina a completou. Ela muda renunciando ao próprio casamento, sendo Mina a catarse que ela precisava para se livrar daquela vida, e sendo o quadro sua prisão simbólica.

O filme acaba por ser uma experiência interessante sobre amizade feminina entre mulheres com vivências diferentes e experiências de pessoas migrantes, apesar de este último tópico não ser o foco e não se limitar a ele.

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