Crítica escrita por Mateus José.
Sinopse: No começo dos anos 70, a jovem Elisa é internada à força pelo pai no Hospital psiquiátrico Colônia, por ter engravidado do namorado. Após passar por muitos abusos, Elisa, junto com outros colegas injustiçados, lutará para encontrar uma maneira de fugir dessa sucursal do inferno.
Em Ninguém Sai Vivo Daqui, acompanhamos Elisa (Fernanda Marques), que, após engravidar do namorado e recusar um casamento arranjado, imposto por seu pai, com um homem mais velho, é internada no Hospital Psiquiátrico Colônia, na cidade de Barbacena, em Minas Gerais.
Baseado no livro Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, e com direção de André Ristum (A Voz do Silêncio, 2018), Ninguém Sai Vivo Daqui inicia-se com um lettering com os seguintes dizeres: “As personagens deste filme são fictícias, mas os fatos aconteceram realmente”. Logo depois, o filme começa com uma longa cena de abertura, onde vemos Elisa sendo arrastada e jogada em um vagão escuro, sujo e amontoado de pessoas, o que dá um primeiro gostinho do que os personagens vão passar dali em diante. Ademais, há, também, um plano do caminho que o trem percorre, situando o hospício em um lugar isolado e de difícil acesso.
A direção faz questão de estabelecer o horror e os abusos constantes que os internos passam no Colônia. Há uma sequência, em primeiro plano, na qual Elisa caminha pelo corredor do hospício, os outros pacientes a encaram e um homem nu passa por ela, de maneira indiferente e errática. Um zumbido crescente acompanha a personagem. Desde o início, percebe-se que há algo errado com o lugar, mas isso se concretiza ainda no primeiro ato, quando Elisa vai falar com o médico, sobre sua medicação, e questioná-lo do porquê de ela estar ali. O médico faz pouco caso e resume os questionamentos dela dizendo tratar-se de “assunto médico”. Assim, ela perde a paciência, afirma que está ali porque não aceitou o casamento arranjado por seu pai e finaliza trazendo à tona que está grávida de quatro meses.
Nesse contexto, o longa aborda, em sua narrativa, dois temas principais: a reforma psiquiátrica e o patriarcalismo. Tomando corpo justamente no fim da década de 70, década na qual o filme se passa, a reforma psiquiátrica foi de suma importância para o avanço das políticas públicas de saúde mental de uma forma geral. Segundo o Plano Municipal de Saúde Mental: “as políticas públicas de saúde mental visam elaborar leis que contribuam para a melhoria no atendimento dos serviços e benefícios para os usuários, transformando aquilo que é individual em ações coletivas, garantindo assim seus direitos sociais”. Contudo, o que é retratado em Ninguém Sai Vivo Daqui são os tratamentos cruéis e desumanos aplicados anteriormente a essa grande conquista da saúde pública. Por exemplo, as solitárias, quartos escuros onde a pessoa ficava presa sozinha por dias, até semanas. Além disso, o filme aborda os escândalos e os motivos atrozes e arbitrários que levavam alguém a ser internado naquela época.
Quanto ao patriarcalismo, o filme tem várias cenas que demonstram como as mulheres, por vezes, são subjugadas e têm sua autonomia totalmente invalidada pelo desejo masculino. A cena chave para esse debate ocorre durante uma conversa entre Elisa e sua mãe, Antonieta (Rafaela Mandelli), em que ela diz que a filha está ali por ter desafiado seu pai, e que ele nunca aceitaria o filho que ela está esperando, dando a entender que ele será tirado dela.
Sobre os aspectos técnicos, a direção de fotografia, assinada por Hélcio Alemão Nagamine, investe em um preto e branco que transmite toda a melancolia e o desespero de um lugar onde as pessoas são mandadas para serem esquecidas. O som, assinado por Ricardo Reis, é quase um personagem que nos acompanha no decorrer da trama, por exemplo as vozes dos pacientes mortos que Elisa passa a escutar após ser submetida ao tratamento de choque — esses sons ajudam a compartilhar das sensações e aflições dos personagens. Já sobre as atuações, Fernanda Marques faz uma Elisa inocente, com uma postura tímida, mas que vai se soltando em uma crescente no desenvolvimento da trama; Rejane Faria (Vada) dá vida a uma mãe afetuosa que, apesar de ter perdido seu filho, acolhe e cuida daqueles que precisam de carinho; Augusto Madeira (Juraci) performa um enfermeiro asqueroso, canalha e vil que possui um olhar frio e, apesar de calma sua voz, tem um tom hostil que faz o expectador temer pela vida dos personagens que cruzam seu caminho.
Sendo assim, a trama do filme vai se desenrolando e, em paralelo, acompanhamos um pano de fundo de violência escancarada e visceral que, apesar de necessária para a denúncia e a reflexão que o filme promove, por vezes se torna repetitiva e morosa. Ninguém Sai Vivo Daqui encerra-se com uma cena divisiva, onde novamente temos a violência como protagonista, em uma vingança que não agrega à trama. Embora possa ser satisfatória por ser um “troco na mesma moeda”, não põe fim à violência que foi perpetrada durante a narrativa. O longa traz debates muito relevantes, ainda nos dias de hoje, e nos lembra das conquistas sociais que devem sempre ser valorizadas e preservadas para que horrores como os retratados não voltem a acontecer.