Crítica feita por Rodrigo Mello.

Rodrigo Mello é graduado em filosofia pela UERJ, com mestrado em Filosofia da Arte e Estética. Atualmente é doutorando pela mesma instituição, além de ser graduando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Torce para o Fluminense e é ator que já fez peça para uma plateia de uma pessoa.

“A Lira do Delírio”

Dirigido por Walter Lima Jr. Com: Anecy Rocha, Cláudio Marzo, Paulo César Peréio, Tonico Pereira e grande elenco.

 

A Lira do Delírio é um tributo à ironia do acaso. Partindo do pressuposto de que o próprio autor, Walter Lima Jr. foi bem sintético quando, antes da sessão a qual tive o privilégio de assistir, afirmou categoricamente: “faço filme para os outros, incluindo a mim mesmo”, em um tom de quem chegou em um momento da vida em que continua ainda a se perguntar sobre o que seja essa coisa – o fazer cinema , não com um tom bajulatório de falsa modéstia, mas com o espírito questionador sobre como ser possível lidar com a relação entre a técnica formal e a intuição, o elã vital de atores, e até mesmo a humildade de aprender com a equipe. Por isso, dizer que o filme de 1978 seja agência do próprio acaso que teimou em pedir emprestadas as mãos do diretor parece representar a tonalidade afetiva que permeia a obra.

A história gira em torno de dois eixos dramáticos: um, situado na Lapa, no Rio de Janeiro, onde a dançarina Ness Elliott, vivida por Anecy Rocha, que trabalha no inferninho “A Lira do Delírio” tem o seu bebê raptado, e o outro, em Niterói, no carnaval de tempos atrás, cujas personagens já haviam se encontrado acidentalmente no bloco também chamado “A Lira do Delírio”.

Aliás, a homonímia parece ser um dos recursos adotados para denotar o lirismo do acaso, pois quase todas as personagens são chamadas pelos nomes dos atores: Cláudio Marzo é “Claudio”, Paulo César Peréio é “Peréio”, Antônio Pedro é “Dr. Pedro”, e assim por diante (e também podemos nos perguntar se o nome escolhido para a personagem principal ser “Ness Eliot” teria alguma relação com a Chicago dos anos 1940, pois Eliot Ness entrou para a História como o policial que prendeu o gângster Al Capone, que, por sinal, seria retratado anos depois no filme “Os Intocáveis”, 1987, Brian de Palma. Sendo assim, a personagem exercendo a função de refúgio de moralidade da história, aquela que torcemos para que tenha seu conflito resolvido).

A Lapa da década de 1970 ainda é, tal qual em seus tempos áureos da boemia, o território daqueles vistos pela sociedade como malandros, o paraíso dos cafetões e refúgio dos desajustados, tendo agora, como contraponto, uma sociedade moralista em plena ditadura militar. É por isso que o rapto de uma criança, filha de uma dançarina de inferninho, não pode ser denunciado ou sequer ser objeto de muito esforço por parte da imprensa.

Os planos abertos e melancólicos da Lapa noturna, com o bonde soberano deslizando no alto em contraponto com a rua escura e deserta, juntam-se aos diálogos cheios de gírias da época para ambientar personagens de moralidade rodriguiana. A Lapa do filme é a selva onde impera a lei da vontade do mais forte, lar dos amantes sem caráter que procuram momentos de escapismo para suas vidas difíceis. Ali, por um punhado de prazer, alianças de torpezas valem ouro e são feitas sem pudores. Por outro lado, enquanto na Lapa se fazem coisas terríveis ao testemunho da noite, no resto da cidade, nos lares dos pequenos burgueses, o terrível se perfaz escondido com a cumplicidade do poder formalmente instituído, como pode ser visto, por exemplo, na personagem do médico que trafica crianças para fora do país  e o faz em um hospital de grande porte.

Como elo entre esses dois mundos, temos o cafetão Cláudio (Marzo), que, na soberania da Lapa, manda e desmanda nos corpos e nas vidas de suas amantes, de um modo que faz parecer que isso seja uma questão de honra, mas, por outro lado, é sustentado por uma esposa rica e vive de dar desculpas estapafúrdias sobre suas noitadas, além de ter um caso com a empregada.

Quanto a isso, vale abordar que esse é um dos poucos pontos onde o filme envelheceu mal, pois a empregada da casa é negra e tem o seu corpo fetichizado em um tom acima do utilizado para as outras personagens femininas, tendo cenas de nu frontal, enquanto o corpo da atriz principal é, no máximo, erotizado a ponto de se mostrar sua calcinha, como na cena do aeroporto, onde ela corre de vestido curto. Assim, por mais que se possa alegar que haja, nesse aspecto, outras vanguardas, como as cenas de sexo homoafetivo entre o taxista e o traficante transformista e os beijos de homens com homens e mulheres com mulheres, é nosso dever colocar em xeque a necessidade da fetichização extrema do corpo da mulher negra.

Pode ser que nos anos 1970 isso fosse uma estratégia subversiva diante da repressão oficial e oficiosa e que fosse até mesmo desejável para os padrões de uma sociedade hipócrita, moralista e religiosa que esses corpos fossem expostos para o deleite dos maridos “pais de família”, enquanto outros corpos fossem poupados de tal exposição (de fato, não evoluímos muito quanto a isso e, ainda hoje, parecem valer esses mesmos pressupostos). No entanto, mesmo à época já havia quem se posicionasse contra a sexualização do corpo negro feminino (como na crítica negra à Chica da Silva, por exemplo), uma luta que reverbera necessariamente nos dias de hoje, onde essa mesma cena soaria como um fetichismo vertical, cujo intuito seria mostrar que um corpo deve ser mais protegido do que o outro, enquanto lutamos por uma maior horizontalidade.

Como contraponto, vale dizer que a questão racial também é frontalmente abordada, havendo,  habilmente, a exposição dos podres de uma sociedade racista, como quando o médico discute sobre o preço das crianças negras e brancas que seriam vendidas no exterior, um diálogo terrivelmente pesado justamente pela leveza e naturalidade com que é performado.

Em síntese, cabe aqui a discussão geral sobre até que ponto um autor pode ou não ser penalizado pela cartada do anacronismo, quando, por um lado, nos oferece aspectos de deleite de vanguarda, mas, por outro, ainda é um devedor dos vícios de sua época, sem que tenha conseguido superá-los completamente.

Quanto ao eixo dramático do carnaval, vemos ali uma instância metafísica redentora onde todos que, mais tarde, no desenrolar da trama, seriam algozes mútuos, no bloco da Lira do Delírio são apenas partes de um todo, servos de Dionísio que exercem seu direito inalienável ao carnaval, aqui elogiado no esplendor de sua vitalidade e escapismo. Ali, no carnaval poético de Niterói, futuros assassino e vítima trocam beijos e carícias; o cafetão sorri alegre, a heroína caminha entorpecida, o jornalista apenas sorri e o médico é apenas um folião vestido de criança ao som de “mamãe, eu quero mamar”. Era como se, no carnaval, todos estivessem em estado de natureza e só se emancipassem na quarta feira de cinzas.

As cenas do carnaval foram gravadas com o máximo de improviso, com poucas instruções e com total liberdade aos atores para serem apenas eles mesmos. É possível notar diversos foliões olhando para a câmera, o que não foi escondido pelo autor e, pelo contrário, foi cooptado como a dimensão honesta do real. Nesse sentido, a poética frase “lembro de você de outros carnavais” se torna literalmente um recurso diegético, pois, de fato, as personagens se conhecem de outros carnavais, literal e metaforicamente.

Esse é um filme com muitos simbolismos disponíveis a serem acessados. Por exemplo, quando Tonico (Tonico Pereira, que as gerações mais novas se acostumaram a ver como o Mendonça de A Grande Família) empunha e admira a sua navalha, ali está representado o malandro com sua ferramenta de trabalho ativa. Mas o simbolismo de um objeto cortante também será usado em seu sentido passivo, como na cena em que uma personagem tem um diálogo sobre amor com uma faca cravada no peito: a navalha não machuca só a alteridade e todo malandro é, cedo ou tarde, uma vítima. No entanto, é curioso que não haja uma lira enquanto instrumento musical propriamente dito, mas o estandarte do bloco carnavalesco A Lira do Desejo faz, as vezes, de elemento cênico que serve de elo entre o passado e o futuro  e é com ela que uma morte trágica se dá, além de ser a grande pista que leva para uma resolução agradável no fim.

Também não se pode deixar de falar do trabalho crucial das canções que aparecem diversas vezes no decorrer da obra. Como o filme não teve praticamente roteiro, apenas argumentos e liberdade para improvisos e cacos dos atores, a música faz o papel de tingir a atmosfera do que seriam cenas esparsas gravadas antes de se saber onde entrariam. Nas palavras do próprio autor, foi necessário “ver as gravações para entender o próprio filme”, e as boas escolhas de canções populares fazem o papel de dar sentido a imagens que talvez fossem descartadas sem as músicas adequadas. Outro recurso muito interessante usado foi o da cena do interrogatório, onde se mescla o áudio da cena com o vídeo do momento do crime, uma sacada simples, porém eficaz e inteligente.

A fotografia utiliza de muitas cenas bonitas, onde planos abertos mostram a pequenez das personagens diante da imprevisibilidade da vida. É assim na cena onde há um banho de mar na praia de Copacabana, é assim na cena da corrida do aeroporto e até mesmo nas cenas de transição, onde se optou por usar planos de céu com nuvens em movimento. Em um outro nível, as transparências dos atores em forma quase etérea entregues ao carnaval exercem a mesma função de alguém perdido numa paisagem muito maior, da qual são apenas uma parte ínfima.

Em contrapartida, a temática  da solidão de uma mulher aparece nos planos mais fechados, com a personagem central diversas vezes pedindo ajuda para o único amigo que pode contar na sua busca pelo dinheiro do resgate. Essa solidão não precisa da amplidão da natureza, mas da avareza dos lugares cheios de gente que também são desertos.

Quanto aos recursos narrativos, o espectador começa perdido, achando que será um documentário ou musical sobre o carnaval, mas, aos poucos, vai entendendo a trama, até que, em certo ponto, faça todo sentido a passagem do carnaval para o agora e não haja a sensação de incômodo com a pequena estranheza dos primeiros minutos. Essa deriva inicial é uma opção e não um defeito, pois é um processo importante não oferecer uma narrativa mastigada que diga explicitamente tudo o que o espectador deva saber, mas dê a oportunidade de que, proativamente, se façam as concatenações. Parece que, quanto a isso, o diretor foi honesto consigo mesmo, o que refletiu na própria narrativa, pois a gravação se deu em dois tempos: primeiro, as cenas do carnaval e, poucos anos depois, o restante do filme.

Assim, o principal recurso narrativo é, antes de tudo, a inspiração e o respeito ao que o agora pode fornecer, sendo um filme fruto da imprevisibilidade. A narrativa trabalha o tempo todo sutilmente com a metalinguagem de falar do próprio processo de construção do filme, sendo possível perceber no olhar dos atores, quando, muitas vezes, inventaram a fala naquele momento. A metalinguagem alcançou um patamar trágico extra diegeticamente, pois  a atriz principal, Anecy Rocha, que era, ao mesmo tempo, irmã mais nova de Glauber Rocha, musa do Cinema Novo e esposa do diretor Walter Lima Jr., faleceu tragicamente em um acidente pouco antes da finalização do filme, o que torna A Lira do Delírio um filme de várias homenagens  e, talvez, um filme condenado a improvisar em toda a sua existência.

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