Crítica escrita por Ernesto Loaiza.
Sinopse: Uma pequena casa de férias junto ao mar Báltico. Os dias estão quentes e não chove há semanas. Quatro jovens se reúnem, velhos e novos amigos. À medida que as florestas secas ao redor deles começam a pegar fogo, o mesmo acontece com suas emoções. Felicidade, luxúria e amor; mas também ciúmes, ressentimentos e tensões.
Fazer com que nos identifiquemos com uma personagem é um dos principais caminhos para a construção de uma narrativa. Afinal, compreender as paixões e os anseios de alguém é, nas narrativas clássicas, o que nos engaja em uma obra cinematográfica. Contudo, algo mais incomum é, no percurso de duas horas, construir tão bem uma personagem que o espectador seja capaz de saber o que ela sente quando colocada em determinadas situações. Mais raro ainda, é a personagem ser antipática e ainda ser capaz de garantir esse interesse no espectador em decodificá-la, em observar cada detalhe de sua vida e engajar-se na maneira com a qual ela percebe o mundo. Afire (2023), escrito e dirigido por Christian Petzold, apresenta Leon, um protagonista completamente distanciado de tudo e todos, em uma série incessante de conflitos que revelam as minúcias de sua percepção de mundo, e fazem-nos perceber que o problema é mais interno do que externo.
O filme se passa majoritariamente na casa de férias da família de Félix, à qual ele e seu amigo Leon foram para focar em concluir os seus trabalhos (o portfólio fotográfico de Félix e o livro que Leon está tentando publicar). Porém, desde antes deles sequer chegarem, há um imprevisto que vale a pena ser analisado em mais detalhes. Afire inicia-se ao som de In My Mind, da banda The Wallners, enquanto a câmera, do lado de fora do carro em movimento, mostra Leon no banco de copiloto ouvindo Felix dizer “Tem alguma coisa errada”. Ele avisa que o carro está falhando, Leon diz que não ouve nada e, em um sutil gesto, aumenta o som da música. Depois, a câmera, de dentro do carro, mostra as árvores que os rodeiam, enquanto o refrão da canção é tocado, até que, de repente, a música é interrompida bruscamente por causa de um corte seco para o carro, que agora está parado no meio da estrada. Esse momento específico simboliza, desde já, a sucessão de adversidades que Leon irá passar ao longo dos seus dias na casa da floresta, além de, mais importante ainda, aludir ao constante confronto entre suas insatisfações internas e o mundo ao redor. Talvez pareça um salto grande, entre um carro que falha e a grande profundidade dramática de um personagem, mas Petzold faz com que praticamente cada cena seja um exemplo desse embate, por meio de situações triviais que, somadas, agravam ainda mais os conflitos internos de Leon.
Continuando o filme, na cena seguinte, em que eles enfim chegam na casa, Leon descobre que Felix permitiu que Nadja, uma mulher conhecida de sua mãe, dormisse na casa também, o que atrapalha os planos de Leon de trabalhar. Para piorar, Nadja está saindo com Devid, e de noite eles fazem sexo no quarto ao lado fazendo barulho, o que irrita Leon e faz com que ele tenha que dormir do lado de fora para conseguir dormir. Contudo, apesar dessas situações serem repreensíveis, importam mais as reações de Leon do que a gravidade do ocorrido em si, pois ele está sempre irritado, insatisfeito, mas quase nunca age, conversa ou tenta se conectar com os demais. Bastou uma conversa de Felix com Nadja para ela pedir desculpas a Leon, e ela ainda tenta ser simpática quando se encontram, mas ele não demonstra nenhuma cortesia. Ou seja, pelo filme girar em torno do ponto de vista de Leon, de início imagina-se que ele passará por maus bocados como aqueles dos primeiros dias, e de fato irá, mas rapidamente se percebe que ele é incapaz de pensar em algo além de si ou de seu trabalho, enquanto os outros conseguem lidar com os problemas inesperados de forma tranquila. Dessa forma, torna-se muito mais fácil simpatizar com qualquer outro personagem do com que ele, pois enquanto nós, como espectadores, passamos a apreciar os demais, suas histórias e suas conversas, além da belíssima paisagem local, entendemos que Leon não enxerga nada dessa beleza, é um homem taciturno com uma mistura usual de ego inflado e insegurança.
Sendo assim, o filme prossegue com a adição de novas situações, novos personagens, enquanto continua colocando Leon em situações de estresse. Aliás, enquanto o desenrolar das interações das personagens ocorre, a cidade está passando pelos perigos de incêndios florestais, incêndios esses que avançam em direção à casa dia após dia. De certo, o símbolo das chamas aplica-se à Leon, por guardar uma raiva que, sem perceber, consome sua própria vida e torna-o infeliz — por dentro, incêndio, por fora, cinza. Isso até vai de encontro com as escolhas de figurino, que faz com que ele contraste com o ambiente verde e o praiano do local, devido às suas roupas escuras, e com Nadja, sempre com roupas coloridas vibrantes. Portanto, com essa repetição de conflitos, evidenciam-se suas inseguranças como artista, sua percepção de que tudo o que os outros fazem com ele é pessoal e seus ciúmes corrosivos, enquanto esses problemas não existem para os outros, existe o mundano enquanto apreciação dos prazeres do mundo, apesar dos pesares.
Afire tem uma temática bastante clara e ela é incrementada, com muita sutileza por parte da direção, a cada cena porque, com o tempo, de tanto compreendermos a percepção de Leon, acaba que não há um gesto das outras personagens, um olhar, uma palavra, por mais inofensivas e banais que sejam, que não indique o que é que Leon sente no momento. Dito isso, as adversidades sempre haverão de existir, e, se não por causas humanas, a própria natureza há de exibir sua força. O que Leon é incapaz de compreender, é que a vida passa diante de seus olhos, e ele, no estado em que está, mergulhado em seu egocentrismo, não conseguirá viver em absoluto, e isso as outras personagens sabem, pois fica evidente que carregam fardos tão pesados quanto os dele, mas conseguem tratar a vida com mais leveza — e isso requer uma força e tanto.