Os socos dados no ar, o riso incontido e a euforia queimando no peito formam uma lembrança que guardo com carinho, de um dia de anos atrás. Era época de mais uma temporada de festivais de cinema pelo mundo, e Julia Ducournau vencia alguns prêmios dos mais importantes com o seu Titane. No festival que me causou todo esse estado de comoção, a realizadora agradecia, com a voz vacilante, com um “obrigada por deixarem os monstros entrarem” em forma de arremate à plateia. Deu certo. Na ocasião, um longa-metragem de horror estava na pauta dos debates cinéfilos acalorados. Uma narrativa sobre a “nova humanidade”, segundo Ducournau, ou sobre uma stripper que engravida de um carro em uma trama kingiana, se ficarmos na premissa que vendeu a obra no boca-a-boca. O histórico de autores desse gênero, que cresci amando em figuras como Freddy Krueger (A Hora do Pesadelo) e Ghost Face (Pânico), é o de serem colocados diante das torres da moral e do esnobismo de forma perene. Essa vitória representou um desafogo muito bem-vindo, por mais que momentâneo. A diretora, que em sua juventude abria os livros de medicina dos pais para ficar frente-a-frente com anatomia dos corpos vistos por dentro, se encantando com a humanidade mais visceral e não-vista (e a mais bela, por que não?), conquistara a Palma de Ouro de Cannes na ocasião.
Estudos sobre corpos monstruosos desnudam nossos preconceitos e desejos mais sombrios há décadas. Jeffrey Jerome Cohen, para ficar em um autor popular, nos lembra que Thomas Morus deformou Ricardo III, um monarca controverso, mas de certo de carne e osso, numa figura pitoresca e monstruosa como meio produzir uma crítica política. O pesquisador cita ainda, em um momento mais a frente de seu ensaio, como as mulheres que ousaram e ousam fugir ao seu ‘papel social’ acabam transformadas em Scylla, Weird Sister, Lilith, Gorgon, etc. Milhares morrem agonizando por conta disso hoje. Outros genocídios, como o dos muçulmanos durante as cruzadas, o dos judeus tanto no Egito antigo quanto na Alemanha nazista e o dos nativo-americanos diante do Destino Manifesto, foram perpetrados em favor do aparato cultural de sociedades dominantes, pois buscava-se por uma manutenção do mesmo. Povos inteiros – o “Outro dialético” – foram posicionados enquanto criaturas aniquiláveis aos olhos dos perpetuadores desses massacres. A relevância de se fazer tais análises com o objetivo de compreender o nosso lugar na história dessas representações, ganhando consciência quanto aos erros que ainda cometemos, é inestimável. Quando me perguntam para que serve investir dinheiro público e tempo em reflexões sobre o fantástico, contudo, a última tese de Cohen em seu A Cultura dos Monstros é a primeira que me vem à cabeça, justamente por lidar com essa ideia:
“Os monstros são nossos filhos. Eles podem ser expulsos para as mais distantes margens da geografia e do discurso, escondidos nas margens do mundo e dos proibidos recantos de nossas mentes, mas eles sempre retornam. E quando eles regressam, eles trazem não apenas um conhecimento mais pleno de nosso lugar na história e na história do conhecimento de nosso lugar, mas eles carregam um autoconhecimento, um conhecimento humano – e um discurso ainda mais sagrado na medida em que ele surge de fora. Esses monstros nos perguntam como percebemos o mundo e nos interpolam sobre como temos representado mal aquilo que tentamos situar. Eles nos pedem para reavaliarmos nossos pressupostos culturais sobre raça, gênero, sexualidade e nossa percepção da diferença, nossa tolerância relativamente à sua expressão. Eles nos perguntam por que os criamos.” (COHEN, p. 55, 2000)
O corpo monstruoso é um produto cultural; suas representações em obras de ficção também o são. E discursam amplamente sobre períodos históricos e medos sociais que assolam milhões de pessoas: Ricardo III, Jason (de Sexta-Feira 13) e tantas outras criaturas icônicas carregam consigo marcadores incontornáveis dos afetos de seus criadores quando os conceberam. Cohen, ainda, traz apenas uma possibilidade para pensarmos nas genealogias do horror. Eu poderia ter usado como exemplo a presença estética do gótico nessas obras que, de forma recorrente, nos lembram das consequências funestas de negligenciar o passado: como é o caso de Amada, de Toni Morrison, segundo o professor Júlio França em um de seus artigos mais célebres. Ou ainda quanto há a questão das tantas vivências que metaforizamos em fabulações para lidarmos com sentimentos que não ousamos mimetizar de forma direta. Meu orientador de Iniciação Científica, o professor Ramiro Giroldo, citava a personagem de Regan em O Exorcista (tanto no livro quanto no primeiro filme) como modelar nessa função – nos remetendo a ter um familiar doente em casa sem que possamos fazer nada para ajudá-lo. É possível, em uma quarta chave (e existem incontáveis outras que não irei enumerar aqui para não chateá-los), pensar na criação de figuras monstruosas como meio para driblar a censura e produzir reações a neuroses coletivas. O Conde mais famoso da Transilvânia se transforma na própria aids durante os anos 1990 pelas mãos de Francis Ford Coppola, ou pelo menos assim versam as leituras correntes de Drácula de Bram Stoker.
Temos ainda os reinos da ficção científica, do realismo fantástico e de diversos outros gêneros que pertencem ao guarda-chuva da fantasia, definido pelo Dr. Flavio García como uma validação para “[…] a hesitação (Todorov), a ambiguidade (Furtado), a incerteza (Bèssiere), enfim, a dúvida frente ao fenômeno insólito que é necessária ao fantástico”. As reflexões que se encaixem nesse campo de estudos é o que espero desta editoria e de suas produções, que podem se apresentar na forma de artigos (não precisam ser inéditos), análises fílmicas, entrevistas, críticas, ensaios, notícias, colunas, vídeos, etc. Meu desejo é que possamos contribuir ativamente com o trabalho de tantos expoentes que se dedicam a pensar esse modo narrativo (como se compreende o fantástico hoje) no Brasil. O maior nome segue sendo, sem dúvidas, o de Laura Cànepa, da UAM – uma das professoras responsáveis pela aprovação, neste ano, do inédito Seminário Temático de estudos do horror e do insólito pela Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Fica aqui a minha promessa, então, de manter aberta em bem mais de uma fresta as portas da editoria para os autores e autoras que se proponham a pensar cinema e estudos do insólito de forma apaixonada e autoral. Suas produções serão apreciadas por este Observatório e, se apresentarem questões como essas que eu resumi acima (ou outras que eu sequer imagino que possam existir – me surpreendam), veiculadas em nosso site sem moralismos na revisão ou coisa parecida.
Em seu manifesto anti-100 anos do cinema, Jonas Mekas propõe que “a verdadeira história do cinema é uma história invisível: história de amigos se reunindo e fazendo aquilo que eles amam”. O realizador vanguardista se referia à produção de filmes quando escrevera essas palavras. Considerando, todavia, o pensamento crítico sobre as obras como um processo tão importante quanto a sua feitura (eu estou no grupo dos que consideram, pelo menos), além de deixar portas abertas me comprometo também a fazer da nova editoria um espaço de união à novos olhares. Se escrita em si é uma tarefa na maior parte das vezes solitária, as conversas animadas nos bares que levam a ela certamente não podem ser. Espero que vibremos dividindo a mesa na próxima vitória de um longa do insólito ficcional em Cannes! E, como forma de não desencorajá-los a viverem os momentos solitários com igual intensidade, peço licença para ser um tanto cafona e citar uma fala de um dos grandes filmes nacionais (pelo menos para mim), O Menino e o Vento. No seu clímax, o engenheiro-protagonista da trama decide se defender diante do tribunal dizendo, em conclusão: “Senhor, juiz, envergonho-me de ter sido obrigado a contar, em um ambiente impróprio para que me acreditem, coisas que parecem inverossímeis. Um crime é um crime, e impõe respeito, e a narrativa e o juízo de uma aventura com o vento há de parecer coisa inventada e absurda. Mas essa é a verdade simples, direta, intensa como eu a vivi. Não sei se ela me incrimina ou me absolve, mas contei tudo exatamente como aconteceu, ou minha memória guardou. Procurei relatar tudo, sem a vergonha que certos detalhes quase infantis naturalmente trazem.”
Será uma honra conhecê-los, meus amigos.
Marco Antônio Bonatelli
Editor de estudos do insólito
m_bonatelli@id.uff.br