Texto escrito por Luciano Dantas Bugarin.

Luciano possui grau de mestre em Cinema e Audiovisual pela UFF (2022), grau de especialista em Bullying, Violência, Preconceito e Discriminação na Escola pela UNIFESP (2021), grau em licenciatura em Educação Artística com habilitação em Desenho pela UFRJ (2006) e graduação em Cinema e Audiovisual pela UNESA (2008). Atualmente é professor de Artes Plásticas da Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes Visuais, atuando principalmente nos seguintes temas: artes plásticas, história da arte, desenho artístico, cinema, vídeo, fotografia, edição de vídeo e roteiro. Realiza palestras e eventos relacionados à educação, bullying e artes. Atua também como cineasta independente.

Cinema e pintura. Duas expressões artísticas, ao mesmo tempo tão distintas, mas também tão próximas. Por ambas linguagens, o ser humano consegue expressar percepções, sentimentos, ideias e narrativas. Por ser mais antiga, a pintura influenciou profundamente a origem do cinema. Mas essa influência logo tornou-se mútua.

A própria pintura já havia sido influenciada no século XIX pelo surgimento da fotografia. Com a facilidade evidente de produzir-se imagens da realidade de forma técnica, o impressionismo passou a ser a forma que os pintores encontraram de desenvolver o olhar artístico e capturar uma essência que a câmera não seria capaz de realizar.

Essa estreita relação entre cinema e pintura acompanha a progressão (ou percurso?) de mudanças de estéticas, narrativas, suportes e formas de fruição até os dias atuais. Desde o primeiro cinema, que cineastas buscaram enaltecer essa herança imagética por meio da recriação direta (ou indireta) de pinturas da história da arte.

Desde “Jogo de carta” (1896), de Louis Lumière, inspirado no quadro “Os jogadores de cartas”, de Paul Cézanne a “A morte de Marat” (1897), de Georges Hatot, inspirado no quadro “A morte de Marat” (1794), de Jacques-Louis David.

A recriação dessas pinturas sob a reprodução técnica da câmera vai além de uma modificação do sentido de obras retratadas em filme. Esse deslocamento inicialmente foi visto por alguns intelectuais como uma rejeição do valor cultural da pintura para um segundo plano na película, pela característica de entretenimento inerente ao surgimento do cinema.

Porém, esta transposição foi também defendida por outros intelectuais, entre eles, mais notadamente o filósofo Hugo Münsterberg, que tinha bastante apreço pelo cinema e interesse nos estímulos sensoriais e psicológicos que o audiovisual consegue provocar no espectador. Para ele, ver uma pintura em um filme é uma experiência tão emocionante quanto ver a obra original. A recriação, seria então uma maneira de enobrecer uma pintura, e não diminuir ou vulgarizar seu valor.

Os filmes do primeiro cinema eram realizados com a câmera parada, de forma que remetia-se não apenas ao teatro, mas também às composições pictóricas. Neste primeiro período, os planos eram enquadrados de forma mais instintiva e suas relações com as narrativas apresentavam uma ideia mais de recorte de uma realidade. Tal qual a fotografia, onde o espaço representado não era limitado apenas pelo que aparecia em quadro. De forma semelhante, uma pintura é um recorte de um universo mais amplo.

O filme “A morte de Marat” é um exemplo típico deste primeiro cinema, onde a ação se passa toda em frente a uma câmera fixa, como em um teatro filmado. Em 40 segundos, o filme apresenta um princípio de uma tentativa de aproximar a linguagem audiovisual da pictórica, para além do enquadramento de uma composição. Através da decodificação de elementos pictóricos, busca-se uma ressignificação, em função de uma narrativa fílmica/teatral. O espaço fílmico torna-se um elemento híbrido, entre cinema e pintura, na elaboração da atmosfera do evento pictórico.

O quadro representa o jornalista Jean-Paul Marat[1], logo após ter sido morto em uma banheira por Charlotte Corday[2]. O filme expande o espaço-tempo da pintura ao incluir o antes e o depois do momento representado no quadro. O filme apresenta um único plano, como era comum no primeiro cinema e um único enquadramento como em uma pintura, mas é um plano que contém um imagem-movimento, que transmite a sensação de tempo real/vivido de um acontecimento presente ao espectador.

Na década de 1950, havia um número tão grande de filmes que tinham como tema principal pinturas, esculturas e obras de arte em geral, que o escritor Siegfried Kracauer utilizou o termo “filmes sobre arte” para designar o gênero destes filmes.

Atualmente, quando pensa-se em conhecer ou estudar sobre um pintor, um estilo artístico específico, um momento da história da arte ou simplesmente uma pintura em especial, o cinema é uma opção fundamental como fonte de apreciação, pesquisa e conhecimento.

Da mesma forma que o cinema aumenta o interesse do público por um livro que tenha sido adaptado como roteiro de um filme, ele também causa o mesmo efeito pela obra de um artista. Como por exemplo, o filme “Frida” (2002), de Julie Taymor, inspirado na vida e na obra da pintora mexicana Frida Kahlo. Na época, o lançamento do filme foi responsável por uma verdadeira “Fridamania”.

[1] Jornalista, apoiador da Revolução Francesa, que publicava um jornal, onde costumava acusar políticos moderados de conspirar contra a Revolução.

[2] Aristocrata francesa que apoiou a Revolução Francesa, mas que condenava as ações de Marat contra os Girondinos, ala moderada da Assembleia Constituinte.

Se você, como eu, é um entusiasta de filmes que contam ou apenas se inspiram na arte de grandes pintores, passo agora, uma pequena curadoria de filmes sobre arte. Não busco a pretensão de apresentar uma lista completa, pois isso seria uma tarefa impossível, e o texto ficaria também cansativo. Busco apresentar apenas uma introdução de um universo tão diversificado e deslumbrante que é o de “filmes sobre arte”.

Vamos começar com dois exemplos bem interessantes para assistir com crianças, e também introduzi-las ao mundo da arte. O primeiro é “Lineia no jardim de Monet” (1993), de Lena Anderson e Christina Björk. Esse filme curto de animação é baseado no livro infantil, de mesmo nome, de autoria de Lena Anderson e Christina Björk, que também assinam a direção da versão animada[1]. O filme começa com a menina Lineia revendo fotos de sua viagem a Paris, quando visitou a casa-museu de Claude Monet, em Giverny. Através de um flashback, ela narra como realizou a viagem.

 Lineia visita seu vizinho, o sr. Bloom, para apreciar um livro com reproduções de pinturas de Monet. Ele sugere que ambos viajem a Paris, para ver de perto as obras, e verificar se a casa de Monet continua como era na época em que realizou suas pinturas. Apesar de parecer pouco verossímil que alguém decida viajar para outro país, apenas para visitar um museu, em um breve instante, a história é interessante por mostrar a relação entre crianças e arte.

Ao observar os quadros em exposição, Lineia comenta que apreciá-los no livro é bem diferente do que apreciá-los de perto, “na vida real” como ela diz. Lineia funciona como um fio narrativo da história e, também, como a personagem com a qual as crianças podem criar uma identificação imediata.

 

[1] Após o sucesso do livro as autoras receberam propostas de compra dos direitos de diversas produtoras ao redor do mundo mas decidiram realizar o filme elas mesmas pelo Swedish Film Institute para preservar sua originalidade.

O segundo é “Destino” (2003), de Dominique Monfery. Esta animação utiliza cenários e elementos surrealistas da obra de Dalí para ilustrar um amor impossível entre o deus grego do tempo, Chronos e uma mulher mortal. O filme foi inspirado no bolero “Destino”, composto pelo músico mexicano Armando Domínguez e gravado em 1945 para a produção, pela cantora mexicana Dora Luz.

O projeto foi iniciado em 1945, quando Salvador Dalí trabalhou em colaboração a Walt Disney na produção de uma série de storyboards. Após o início do desenvolvimento do filme em si, o projeto foi abandonado devido a dificuldades financeiras. Em 2003, Roy Edward Disney, sobrinho de Walt, retomou o projeto.

Os temas marcantes e costumeiros do trabalho de Dalí aparecem no cenário. A animação mostra-se como o elemento audiovisual apropriado para a reprodução das pinturas de Dalí, na linguagem audiovisual. Os elementos visuais do filme e das obras de Dalí podem parecer estranhos ou talvez divertidos para crianças, a princípio. Com a progressiva exposição deles às imagens oníricas, pode-se levá-los à perceber como as representações pictóricas e audiovisuais não precisam estar, necessariamente, ligadas a uma representação realista.

A seguir, apresento mais 8 sugestões de “filmes sobre arte”, buscando abranger uma gama o mais ampla possível de artistas e estilos que o limite dessa lista possa permitir. O primeiro é “Bajado” (2015), de Marcelo Pinheiro, documentário sobre a trajetória de Euclides Francisco Amâncio, mais conhecido pelo nome artístico de Bajado.

O filme apresenta sua obra através da filmagem documental, depoimentos de quem o conheceu, fotos e filmagens de arquivo[1], além de encenações de algumas de suas pinturas. Apresenta-se de forma bem direta uma ligação do cinema com as artes plásticas, pela própria história do artista. O cinema é apresentado como a linguagem que proporcionou a Bajado sua primeira percepção artística. Ele começou a realizar trabalhos artísticos ao pintar cartazes para os filmes, que eram exibidos no cinema.

[1] Cenas do documentário “Bajado – Um artista de Olinda” (1975), de Fernando Spencer e Celso Marconi.

O segundo é “Com amor, Van Gogh” (2017), de Dorota Kobiela e Hugh Welchman. Com o advento das tecnologias digitais, a produção de filmes animados passou a ser mais ágil e menos artesanal. Porém, esporadicamente, alguns são realizados por métodos que remetem às origens da animação. Pode-se citar como exemplo, esse longa, que utiliza a técnica expressiva da pintura a óleo de Van Gogh no processo de animação.

A história é narrada por Armand Roulin (Douglas Booth), filho de Joseph Roulin (Chris O’Dowd), carteiro e amigo de Van Gogh. Ele descobre uma última carta que Vincent havia escrito para seu irmão Theo Van Gogh e quer que o filho consiga entregá-la, como último gesto de amizade pelo pintor. Embora o filme apresente, de certa forma, um estilo de representação bastante formal, cuja expressividade da animação se atém apenas à vivacidade da estética de Van Gogh, o resultado final é bem cativante.

O terceiro é “Caravaggio” (1986), de Derek Jarman. Esse filme é repleto de cenas, que representam o processo da criação de pinturas pelo personagem de Caravaggio (Nigel Terry). Elas recriam as composições do pintor italiano pelo posicionamento dos personagens e pelo uso de elementos visuais que direcionam o espectador à estética do barroco italiano. Embora as pinturas sejam exibidas durante sua elaboração, elas aparecem mais como formas expressivas de cores, com base na tensão dramática da narrativa. A recriação dos quadros apresenta seu vigor nos elementos cênicos e de luz, especialmente no contraste dramático entre luz e sombras característico de sua pintura.

O filme explora os contrastes presentes na vida e obra de Caravaggio. Ele pintava quadros de narrativas católicas, com tamanha profundidade espiritual e expressividade dramática e, ao mesmo tempo, levava uma vida repleta de conflitos e excessos, muito distante de uma “vida religiosa”. A narrativa do filme explora bastante esse aspecto, como um eterno conflito entre sagrado e profano. A oposição entre luz e sombra no barroco visava o engajamento religioso do espectador. No filme ela possibilita o engajamento do público para assimilar a dualidade presente na temática das artes da contrarreforma.

O quarto é “O que meus olhos já viram” (2007), de Laurent de Bartillat. Nesse filme, uma estudante de Doutorado em história da arte faz uma pesquisa sobre Watteau, pintor francês que transitou entre o barroco e o rococó no início do século XVIII. Ela estuda sobre a representação da figura feminina nas obras de Watteau, e acaba investigando sobre a suposta identidade daquela, que seria a última modelo feminina a trabalhar com o pintor. O filme mostra uma interessante dramatização sobre o imaginário de um artista e a possibilidade de diferentes versões para o mesmo tema.

Percebe-se como a busca de Lucie (Sylvie Testud) pode ser na verdade uma metáfora de como interpretamos uma obra de arte. A própria obra de Watteau foi celebrada quando o pintor era vivo, mas posteriormente desprezada a partir da Revolução Francesa, por simbolizar de forma tão vívida a frivolidade da aristocracia, pelo estilo rococó, e finalmente redescoberta na década de 1850.

O quinto é “Goya” (1999), de Carlos Saura, filme que retrata os últimos anos da vida do pintor espanhol Francisco de Goya. Aqui, vemos como as loucuras da sociedade externas ao pintor moldaram seu “interior”, através de suas expressões artísticas, em especial nas cenas em que ele pinta uma série de visões fantásticas, nas paredes de sua casa, no exílio em Bordeaux.

Ao invés de apresentar a expressão artística, apenas como uma reação do pintor à sua realidade, o filme mostra como ele molda a realidade, a partir de suas percepções e sentimentos internos. A cenografia é responsável por ditar a atmosfera visual das cenas. As tonalidades dos objetos que formam as composições visuais ditam o tom do filme e da obra de Goya, que é recriada a partir de encenações que misturam pintura, cinema e teatro.

O sexto é “Berthe Morisot” (2012), de Caroline Champetier. Esse filme apresenta a história da pintora francesa Berthe Morisot, a primeira mulher a participar do movimento impressionista. Vários aspectos dramáticos de sua vida são abordados com mais destaque que seu processo criativo em si. Porém não há como distanciar estes eventos de sua arte. Por exemplo, a maioria de suas composições representam “temas domésticos”, pois ela não podia pintar em espaços públicos.

As mulheres também não eram aceitas como alunas na Escola de Belas Artes em Paris[1], o que fez com que ela e suas irmãs estudassem pintura em casa. Na época, o destino mais comum para as mulheres era o casamento. A presença feminina no ambiente artístico era restrita ao papel de modelo. A atividade da pintura, mesmo como hobby, exigia alto preço a pagar, pois a prática era julgada imprópria pela sociedade.

 

[1] Mulheres só puderam estudar ali a partir de 1897, dois anos após a morte de Berthe.

O filme mostra como Berthe capturava a luz em suas pinturas, como se iluminasse a escuridão. Temos a sensação de estarmos imersos naquele ambiente de luz, sons e arte.

Depois de muito tempo pintando apenas em casa, ela se inicia no estilo que a fez mais célebre, de pinceladas soltas e cores mais luminosas. Quando ela se livrou de um “confinamento criativo” de pintar em lugares fechados, para pintar ao ar livre, ela mirou um caminho da representação da natureza, sob a impressão da luz, que influenciaria todo o movimento impressionista, que surgiria logo depois.

O sétimo é “O olho interior” (1972), de Satyajit Ray. Documentário sobre Benode Behari Mukherjee, pintor indiano, que ficou cego de um olho bem jovem, em sua infância. Tendo nascido em uma época de pouca ênfase na educação inclusiva, ele teve acesso aos estudos, apenas, por convicções familiares. Interessou-se por desenho desde cedo e trabalhou como artista visual e professor. Aos 53 anos perdeu a visão de seu outro olho, após uma cirurgia de catarata, e teve que ressignificar seu modus operandi de criar arte, através da adaptação de seu próprio corpo e sentidos.

Assim como Matisse passou a “pintar” por meio de recortes e colagens, Benade recriou sua maneira de externar suas expressões artísticas. Sendo uma delas a colagem. Assim como, ele passou a construir imagens com base na transformação súbita que ocorreu em sua vida, pode-se pensar em como o estímulo à criatividade a partir do domínio de uma linguagem pode transformar a maneira de uma pessoa se expressar e se posicionar no dia-a-dia.

Por fim, temos “Shirley: Visões da realidade” (2013), de Gustav Deutsch. No estudo que realizou acerca do efeito de presença de obras, Gumbrecht disse: “Quero que os alunos se unam naquela promessa de um mundo eternamente em paz que parece me rodear quando me perco diante de um quadro de Edward Hopper”. As obras do pintor americano são chamadas de pinturas cinematográficas e inspiraram incontáveis filmes. Este dá um passo além. Ele é totalmente inspirado nas pinturas de Hopper. São 13 pinturas para ser mais exato.

O filme busca dar vida à melancolia, presente nas obras de Hopper, dando voz e pensamento para as pessoas, que são retratadas ali. Apesar de recriar os quadros, o filme não vai além do que é mostrado nas pinturas e se detém nos limites do quadro pictórico. Entretanto faz alusão a um extracampo, já presente nas pinturas de Hopper e evidenciado pelas narrações em áudio, e pela movimentação dentro do quadro.

Onde achar os filmes:

“Jogo de carta”, “A morte de Marat”, “Lineia no jardim de Monet” e “Bajado” estão disponíveis no YouTube.

“Frida” está disponível para aluguel em Microsoft Store, Claro vídeo e Apple TV.

“Destino” pode ser encontrado no YouTube e está disponível no Disney+.

“Com amor, Van Gogh” pode ser encontrado no YouTube e está disponível no Amazon Prime Video e Looke.

“Caravaggio” está disponível no Mubi.

“Goya” pode ser encontrado no YouTube e está disponível no Mubi.

“Berthe Morisot” está disponível no Mubi.

“O olho interior” pode ser encontrado no YouTube e está disponível no Mubi.

“Shirley: Visões da realidade” pode ser encontrado no YouTube e está disponível no Mubi.

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