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Macbeth é uma das peças mais famosas e reproduzidas de Shakespeare. Na trama, o personagem título é tentado a matar o rei da Escócia depois de descobrir seu destino em um encontro com três bruxas. A história do lorde Macbeth é talvez o conto definitivo sobre decadência, traição e ambição. Nesse sentido, ambicioso também é o projeto de Joel Coen em filmar a peça com o texto original de Shakespeare, preto e branco e no formato 4:3. E se isso vai afastar muita gente de dar uma chance ao filme, aqueles que tentarem serão recompensados com uma verdadeira experiência cinematográfica.
Interessante ressaltar que este é o primeiro filme que Joel Coen dirige sem seu irmão Ethan, parceria que já rendeu 4 Oscars (por Onde os Fracos Não tem Vez e Fargo). Isto, no entanto, não significa que o dueto foi desfeito para todo sempre – os bastidores indicam que Ethan apenas não estava empenhado em filmar uma adaptação de Macbeth e estava mais interessado em trabalhos teatrais (irônico, eu sei). De qualquer forma, é interessante perceber que o filme mantém o cinismo e o distanciamento emocional original dos filmes da dupla, mas abdica por completo do humor ácido que também lhe são característicos. Isto, no entanto, serve perfeitamente pra atmosfera que A Tragédia de Macbeth se propõe a instaurar.
Falando em atmosfera, é impossível não discorrer sobre o set design e o uso das luzes em A Tragédia de Macbeth. Ao optar por cenários predominantemente vazios (sem a imensidão de elementos de cena típicas de filmes de época), Joel Coen transforma seus ambientes em arenas para que seus atores possam se digladiar. Isso, é claro, remete à própria origem teatral do roteiro. No entanto, não se engane achando que se trata de “uma peça filmada”. A Tragédia de Macbeth é cinema puro, e, mais do que isso, um filme consciente da própria história do audiovisual. O filme bebe dá água do expressionismo alemão ao usar os jogos de luz para construir composições que só a sétima arte teria capacidade, ao ponto de que não seria superficial dizer que A Tragédia de Macbeth é um dos filmes mais bonitos dos últimos anos.
Não fiquemos, porém, somente no aspecto estético. A Tragédia de Macbeth não tenta ser apenas bonito ou estiloso, mas busca usar sua fotografia para ajudar a contar a história. Afinal, os recortes de luz e sombras representam justamente os principais conflitos da narrativa e de seus personagens. O próprio personagem título é movido pelo conflito entre a sua racionalidade e a sua ambição, transitando entre as luzes e as sombras de sua consciência. Além disso, a própria história da peça brinca constantemente com clareza ou obscuridade das informações “sabidas” por seus personagens (sendo o nobre escocês Ross, o maior exemplo dessa dualidade) que podem ser concretas ou completamente etéreas. Assim, enquanto um mero andar de um personagem rumo às sombras pode indicar uma mudança de consciência a respeito de um ato, em outra cena, as sombras podem servir para demarcar os limites entre o real e o fantasmagórico.
Existe um componente racial que também não pode ser desconsiderado em A Tragédia de Macbeth. Afinal, uma adaptação de uma peça de Shakespeare, usando o texto original e filmada em preto e branco, poderia soar como um filme profundamente branco. No entanto, ao empregar um ator do calibre de Denzel Washington como Macbeth, o filme abdica de um olhar apenas restaurativo do poeta inglês e passa afirmar sua própria visão de mundo – onde figuras literárias não precisam seguir as representações eurocentradas de suas concepções originais. Aliás, nesse sentido, o filme também acerta ao trazer outro ator negro, Corey Hawkins, para viver o virtuoso Macduff – o antagonista da obra, evitando leituras entre o caráter ególatra de Macbeth e a negritude do ator.
Já que citei Denzel, vamos falar de sua atuação. O ator entrega uma das melhores performances de sua carreira, tendo total domínio sobre o texto de Shakespeare e sem se envergonhar das raízes teatrais do mesmo (parecido com o que fez em Um Limite Entre Nós). Assim, ele constrói um Macbeth multidimensional: simultaneamente impiedoso e hesitante, ambicioso e covarde. Ao seu lado, a mais recente vencedora do Oscar de melhor atriz, Frances McDormand, entrega uma Lady Macbeth implacável e inclemente – mas sem nunca superficializar sua personagem. Em leituras mais antigas (inclusive remetendo a origem secular da obra) seria fácil ressaltar as características “vilanescas” da personagem. No entanto, McDormand explicita o caráter assertivo da mesma, frente ao dubitativo Macbeth.
Não tenho dúvidas de que A Tragédia de Macbeth será encarado como mais um “filme de arte”. Termo pejorativo utilizado para obras que fogem do circuito comercial e propõe composições estéticas e narrativas com ritmos menos convencionais. Se de um lado tudo isto é verdade, de outro, é inegável que o filme entregue tudo que promete. Ainda é cedo para dizer se esta será a adaptação definitiva do clássico de Shakespeare, mas isto já deveria ser o suficiente para torna-la imperdível.