Crítica por Renata Serra.

Sinopse: Uma pequena comunidade de descendentes de imigrantes italianos do interior do estado do Rio Grande do Sul recorre a um vídeo caseiro para tentar resolver os problemas básicos de saneamento que afetam seu povo.

Saneamento Básico, o Filme, de Jorge Furtado, conta com a presença de grandes nomes do cinema brasileiro, como Fernanda Torres, Wagner Moura, Camila Pitanga e Lázaro Ramos. Lançada em 2007, a obra ganha um relançamento nos cinemas em uma versão digital restaurada em 4k, realizada pela Cinemateca Brasileira, e é acompanhada do curta-metragem Ilha das Flores, também dirigido por Jorge Furtado.

Ilha das Flores é um curta-metragem documental que acompanha a trajetória do cultivo de um tomate até seu destino final de descarte, em um lixão a céu aberto em um lugar chamado Ilha das Flores, em Porto Alegre, onde porcos, mulheres e crianças têm acesso a uma alimentação parecida. Em linguagem científica crua e direta, o curta tece um comentário ácido sobre o ciclo de produção e consumo que rege o sistema capitalista em que vivemos, uma ironia narrada por Paulo José em fatos que refletem a desumanização que acontece em nossa sociedade baseada em termos financeiros. A injustiça de um sistema que considera certas mulheres e crianças menos merecedoras de uma alimentação digna do que porcos criados para o abate devido o capital que possuem é refletida na reação em cadeia que se inicia na plantação de um tomate, um exemplo das situações que movem a economia e a desigualdade no Brasil e no mundo.

Saneamento Básico, o Filme, é um longa-metragem centrado em uma pequena comunidade fictícia de descendentes de italianos na serra gaúcha atormentados pelo mau cheiro que enfrentam frente a falta de tratamento do esgoto da cidade. É a partir da necessidade de tratá-lo que Marina (Fernanda Torres), acompanhada de seu marido Joaquim (Wagner Moura), vai à prefeitura do município pleitear a causa dos moradores, indo de encontro à, como esperado, uma resposta negativa da gestão municipal. O casal descobre, por meio de Marcela (Janaína Kremer), uma funcionária pública, a existência de uma verba não utilizada para a produção de um filme (ou um vídeo, como os personagens chamam) que seria devolvida para Brasília caso não encontrasse devido uso. É assim que Marina e Joaquim começam a criar a história do monstro da fossa, um pretexto para a obtenção dos fundos necessários para a obra da fossa séptica.

O roteiro assinado por Jorge Furtado usa da ingenuidade de seus personagens para construir o humor do filme em diálogos curiosos e situações que surgem de pessoas comuns tentando gravar um filme sem saber essencialmente como fazê-lo. Por meio da metalinguagem, Furtado explora os pormenores de uma produção cinematográfica pelo olhar daqueles não acostumados com os bastidores da gravação de um filme. Do argumento à montagem, da direção de arte à produção, os personagens de Saneamento Básico encontram soluções práticas que podem facilitar seu trabalho, sem perceber que, enquanto isso, estão fazendo cinema. Ou pelo menos tentando. O elenco do filme, além de grandes nomes da indústria televisiva brasileira, é a força chave na construção do filme. Acompanhados de Paulo José, Bruno Garcia, Lázaro Ramos e Tonico Pereira, a interpretação de Fernanda Torres e de Wagner Moura é destaque, ambos apresentando um timing de comédia extraordinário em diálogos afiados e divertidos que perde apenas para sua química em tela. Além da dupla, Camila Pitanga destaca-se como a marcante e vaidosa Silene, oscilando entre a personalidade de sua personagem e a personagem que sua personagem interpreta, em péssima atuação.

O filme, por trás de sua comédia, carrega uma reflexão sobre a situação das políticas públicas do nosso país. É na autoconsciência da obviedade de seu trabalho que Jorge Furtado cria uma obra ímpar pautada na sátira do sistema burocrático da política brasileira e desenvolve uma denúncia em tons de comédia. Com momentos como o personagem de Sérgio Lulkin aproveitando-se do trabalho das pessoas da comunidade como forma de alavancar sua carreira como prefeito, o filme ironiza e destaca o improviso típico das soluções encontradas por populações esquecidas pelo poder público. A proposta de fazer um “filme dentro do filme” funciona como um recurso criativo que expõe, de forma lúdica, o absurdo das engrenagens administrativas brasileiras. Furtado explora, também, como o investimento na arte cria resultados, mostrando como a vida dos moradores da Linha Cristal é mudada com a sua produção cinematográfica, como, por exemplo, o aumento do turismo local após o lançamento da obra. 

Saneamento Básico, o Filme, é uma obra satírica divertida sobre a burocracia de nossas políticas e também sobre a simplicidade de fazer cinema frente ao desconhecimento de certas burocracias da indústria cinematográfica. O filme reflete a importância do investimento na cultura, e escreve um tipo diferente de carta de amor ao cinema. Furtado consegue, com bom humor e inteligência, transformar um problema crônico brasileiro em um retrato tragicômico da nossa realidade. Sua filmografia, em filmes como Ilha das Flores e Saneamento Básico, reflete uma pequena parcela do melhor que o cinema brasileiro pode oferecer.

Por fim, com a restauração de Saneamento Básico, fica a pergunta: será que realmente é necessário restaurar um filme feito pós retomada do cinema nacional, de fácil acesso na internet, frente ao sucateamento de obras mais antigas do nosso cinema, ou até mesmo de obras recentes que sofreram com a mudança para o digital? É ótimo revisitar um filme de Jorge Furtado com Fernanda Torres, Wagner Moura e companhia, mas quantos filmes nosso cinema perde devido a uma restauração desse estilo? Dito isso, o relançamento da obra abre portas para aqueles impressionados com a recente força do nosso cinema o explorarem. Ainda é um começo.

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