Crítica escrita por Edeizi Monteiro Metello.
Sinopse: Janaína está no primeiro ano da faculdade de Direito e é a primeira pessoa da família que consegue acessar a universidade, mas uma gravidez indesejada ameaça os planos que ela havia traçado.
O filme Ainda não é amanhã (2024, Milena Times) acompanha Janaína, papel que garantiu o prêmio de melhor atriz na mostra Novos Rumos no Festival do Rio de 2024 a Mayara Santos. Janaína é uma típica estudante esforçada que está buscando ascensão em sua carreira através da universidade, e como muitos outros estudantes na realidade brasileira, consegue um financiamento para entrar em uma faculdade privada. Tudo isso é desafiado quando ela descobre uma gravidez e começa a repensar seus planos.
O filme se passa em Recife, mas a temática é universal. É muito difícil não reconhecer as histórias de outras pessoas em algum momento da vida de Janaína, seja sua trajetória profissional, seja seu dilema, seja sua relação com a família, amigos ou namorado.
Um dos aspectos da obra que a destaca de imediato é a ambientação que é construída. O filme utiliza de muitos planos próximos e sussurros para transmitir uma sensação de intimidade. O espectador é convidado para adentrar o mundo de Janaína, ver a família e amigos que a rodeiam, e ter a sensação de estar convivendo lado a lado com eles, sempre a partir do ponto de vista de Janaína e seu mundo interno.
A familiaridade também é construída mostrando o espaço do lar de Janaína, que mora com a mãe, Luciana (Clau Barros) e a avó, Rita (Cláudia Conceição), com planos próximos e leves movimentos de câmera. É um filme que usa do tempo lento da vida diária, sem pressa, e deixando os acontecimentos se desenrolar aos poucos.
Esse tempo lento também é utilizado para construir os sintomas de gravidez de Janaína. Não é algo dado imediatamente, apesar de já pressuposto ao ler a sinopse ou compreender o argumento que o filme está construindo com as cenas iniciais, que são sugestivas e não se preocupam em mostrar os detalhes de como aquilo veio a acontecer. A porta se fecha no início, e é como se o longa já dissesse ao espectador que se entende o que vai acontecer ali, naquele momento.
É uma obra muito colorida, com o mundo externo de Janaína revelando essas cores toda vez em que ela se encontra fora de casa, e contrastando com o mundo interno dela, que é azul, refletido em suas roupas, nas paredes de seu quarto e até mesmo em seus sonhos, que usa também a simbologia da água para representar seu estado mental interno, bem como efeitos sonoros que trazer elementos do hiper-realismo.
Há muito silêncio, e muito não dito entre personagens. A compreensão se dá, muitas vezes, através de uma breve troca de olhares, o que traz uma delicadeza para o longa.
Esse silêncio também é bem utilizado no momento da revelação da gravidez, e de imediato percebe-se que não há qualquer sinal de alegria ou alívio para a protagonista. A obra revela o pequeno ambiente do banheiro lentamente, e o silêncio é desolador, preenchido apenas por ruídos do ambiente.
O azul se faz cada vez mais presente, principalmente nas cenas noturnas. Noites de insônia são varridas por essa cor, o que também pode transmitir a solidão de Janaína, que não consegue visualizar na família apoio para este momento tão crítico.
Outro momento interessante do filme, é o que utiliza da imagem de paredes fechando Janaína na biblioteca, que não tem fala alguma, e usando sons e essa distorção visual, consegue transmitir muito do desespero que Janaína sente.
O silêncio presente no filme também é um reflexo da vida real, pois aborto ainda é um tema tabu, e o aborto induzido é crime previsto no Código Penal. Até quando é comentado no filme, fala-se em “alguém que já fez”, sendo que a palavra aborto só aparece nos minutos finais do filme.
O filme mostra uma realidade que é inevitável, caso a mulher que deseja interromper a gestação procure os meios para realizar tal feito. O problema de ser crime apenas a empurra a métodos alternativos pouco seguros, como plantas medicinais e remédios, fora do hospital e de um acompanhamento humanizado que poderia salvaguardar sua vida.
Vale destacar também o momento que o filme representa o cuidado que as personagens mulheres têm umas com as outras ao retratar a rotina de cuidado capilar com seus cachos, como no momento em que Janaína ajuda sua mãe nesse processo.
Amizade feminina também é um tema recorrente, e Janaína é muito apoiada por sua amiga, Kelly (Bárbara Vitória), que está sempre presente nos bons e maus momentos, até mesmo compartilhando a própria casa para que Janaína consiga tomar o remédio abortivo escondido e tenha alguém de apoio caso lhe aconteça alguma coisa.
Ao assistir o longa, fica difícil não notar a potência de Mayara Santos na tela, e como seu prêmio é muito bem justificado. Mayara entrega uma Janaína sutil, mas também sóbria e pragmática em seu olhar distante e linguagem corporal comedida. Janaína também é romântica, tratando Jefferson (Mário Victor) com muito carinho e atenção, e sabe se divertir, revelando múltiplas facetas da mesma personagem com maestria e delicadeza.
A obra é uma excelente adição à discussão do tema, também tendo o cuidado de mostrar o outro lado do argumento com a mãe de Janaína, que representa a decisão de seguir com a gravidez. A personagem não julga pesadamente a decisão de Janaína, e ela é acolhida pela mãe. É um bom filme para retratar o lado humano desse tema, e sua forma também revela que ainda há um longo caminho a ser percorrido nessa discussão.