A telenovela, parte da cultura audiovisual brasileira, enfrenta desafios crescentes em um cenário midiático em transformação. Sua influência histórica e social permanece forte, refletindo uma tradição que evoluiu desde os antigos folhetins jornalísticos, passando pelas rádios, o pioneirismo latino americano em Cuba e Argentina com a radionovela, até chegar no nosso país com o desenvolvimento da TV aberta. A novela sempre abordou de temas universais como o amor, mas também à vingança, luta de classes e justiça, mantendo-se como um espelho das experiências e das sensações sociais de territórios subalternizados. 

Com a ascensão das plataformas digitais e a cultura do consumo rápido, a percepção das novelas tem sido repensada. Com a descentralização das emissoras, surge espaço para novas concorrências, não só de fora – o constante crescimento dos doramas e dramas turcos no gosto do brasileiros – como também da localidade. As empresas de streaming veem isso como uma oportunidade de lançarem seus próprios produtos e tentar sua sorte no mercado teledramatúrgico brasileiro, com algumas plataformas designando equipes próprias para supervisionar um núcleo de telenovelas dentro do streaming, afinal, não se esqueça, esse mercado ainda investe e repõe muito capital, seja pela exibição seguida de obras (ao fim de uma, outra precisa estar emendada), como também uma grande rede de marketing, incluindo seus principais atores da casa – configurando num modelo de star system. Forte investimento de capital, equipes designadas para cada projeto, tecnologia de primeira por parte dos estúdios, eis a nossa indústria audiovisual local.

Assim, chegamos numa visão que os streamings tem a oferecer: a novela/série. Com a descentralização dessas emissoras tradicionais, os streamings correram para também tentarem sua entrada no mercado que, não se engane, ainda encanta diversos lares e move muito dinheiro no mercado audiovisual. Começamos por projetos na Netflix como Pedaço de Mim, Vidas Bandidas, da plataforma Star+ e a própria Rede Globo, através da sua própria plataforma, Globoplay, lançando Todas as Flores – que pelo sucesso imediato foi exibido depois em TV Aberta. Embora a maioria dessas obras não tenham sido propriamente divulgadas como dramaturgas, sua grande divulgação se deu pelo fato da mesma importação de modelo e divulgado ao público nos mesmos moldes. Aqui, chegamos na mais nova novela da Max, Beleza Fatal.

Contada por Raphael Montes, escritor de livros como Dias Perfeitos e Uma Família Feliz, mas no ramo audiovisual foi roteirista colaborador do folhetim A Regra do Jogo, da TV Globo e também das séries Bom dia, Verônica e Tá Tudo Certo, produzidas pela Netflix e Star+, respectivamente. Sobre direção de Maria de Médicis, que tem um histórico de direção nesse estilo gigantesco, passando por sucessos da emissora Globo como Paraíso Tropical, Caras & Bocas, Ti Ti Ti, Cheias de Charme, etc. e com isso já percebemos a proposta do projeto. Vendida como um projeto mais curto, porém, mantendo os elementos dos projetos que sempre vemos desde criança, eis a história. Sofia (Camila Queiroz), perde sua mãe Cléo (Vanessa Giácomo), que foi presa injustamente e acabou assassinada enquanto estava atrás das grades. Perdida e desamparada, Sofia encontra refúgio na família Paixão, composta por Lino (Augusto Madeira), Elvira (Giovanna Antonelli) e Alec (Breno Ferreira), que também enfrentam uma dor profunda: a perda da filha após uma cirurgia plástica clandestina. Juntos, eles enfrentam a dor e a revolta, buscando justiça contra os culpados por suas tragédias: Lola (Camila Pitanga), prima de Sofia e uma mulher movida pela ambição, Benjamín Argento (Caio Blat), herdeiro de um império do setor de beleza e Rog (Marcelo Serrado), parceiro de ambos. Nessa busca por vingança, Sofia descobrirá que buscar justiça pode ter um preço extremamente alto.

A história – contemporânea em seus retratos, mas tradicional nas abordagens – traz um contexto real de hoje, no mundo cercado pela cultura da beleza e dos procedimentos, das redes sociais e da cultura dos digitais influencer, traça um paralelo com essas realidades, afinal, a novela, ao interagir com esses diferentes mundos, não apenas retrata a realidade, mas também cria universos imaginários e propõe uma reflexão crítica, fazendo com que o telespectador se envolva ativamente com os conteúdos apresentados. O modelo melodramático que trata temas como vingança, ascensão social, triângulos amorosos, etc. só potencializa a experiência do espectador, que sempre adorou acompanhar essas narrativas nos seus folhetins diários. O resultado que temos é um projeto que carrega todos os anseios de um público que almejava voltar a sentir com uma narrativa, semelhante a anos anteriores, na qual bairros, cidades e estados paravam para ligar o aparelho televisivo e acompanhar com ansiedade os acontecimentos. Mas, será mesmo que o saldo foi somente positivo?

Contada em apenas 40 capítulos, disponibilizados ao público 5 por semana, a direção, rapidamente, já nos leva ao decorrer dos fatos. O projeto pode se caracterizar como uma novela fechada, ou seja, gravada e concluída sem acompanhar o público. A linguagem audiovisual de uma telenovela tradicional se caracteriza pela interação do público com a obra, logo, enquanto estamos assistindo os primeiros capítulos, o roteiro e os episódios ainda são escritos e filmados simultaneamente, permitindo que haja mudanças se necessário. Portanto, o projeto de Montes consegue se tornar autossustentável em sua trama pelos diversos clichês repetidos e reaproveitados: a vilã carismática, a mocinha humilhada que volta para se vingar, fuga de presídio, pessoas que voltam dos mortos, incêndio, explosões… tudo que sempre acompanhamos na TV de casa está aqui, mas peca em algumas execuções de personagens.  

O núcleo restrito prende todos em uma única rede dos acontecimentos, há tramas paralelas, mas nenhuma deixa de harmonizar com o tema principal que é a vingança da Família Paixão, na qual encontram um tom curioso, de referências que começam com a família trambiqueira do filme sul-coreano Parasita, a simples retratação de uma típica família suburbana carioca. Embora seja curioso como a série é retratada no Rio de Janeiro com maioria das suas cenas gravadas em São Paulo, exigindo um trabalho maior da direção de arte e fotografia em sempre reforçar as mesmas paisagens características cariocas aos mesmos cenários montados, que vão se limitando ao decorrer dos capítulos. Começando ao humor do carismático e eficiente Madeira, ao elo do justo e moral personificado por Ferreira, o quarteto da família encontra sua excelência juntos, mas com destaque a Antonelli e Pitanga. Elvira passeia da comédia (sendo ainda o pequeno núcleo cômico existente) ao drama de uma mãe que busca por justiça com maestria, mas Camila Pitanga atinge um nível acima. A frágil Sofia passa por uma jornada inspirada em outras mocinhas anti-heroínas – Nina de Avenida Brasil e Amanda Clarke da série internacional Revenge – que eleva um nível acima por desfiar o próprio público a testar sua empatia, caminhando bem a uma fragilidade e inocência, mas encontrando mesmo seu lugar na imponência, ódio e certa malícia. 

Inquestionavelmente, não dá para dizer que o show não é de Pitanga, mas antes de chegarmos nessa curiosa representação, vale destacar outros atores igualmente explorados nessas perspectivas, como os antagonistas masculinos vividos por Blat, Serrado e Herson Capri. Cada um oferecendo sua visão de clássicos vilões por visões de orgulho, insanidade e poder, todos se saem igualmente competentes como cenas em que Benjamin apanha de seu pai com uma surra de cinto, chorando em posição fetal e encontrando a camada de um homem adulto rebelde, soberbo, mas igualmente infantil e imaturo. Rog tem toda a “tosquice” de uma classe média carioca, cercado de exageros e delicadezas, tornando-o capaz de tudo para alcançar e se igualar aos seus acimas. Capri carece de lacunas não preenchidas pela história, mas compensa pela sua experiência ao passear pelo poder de um homem que fará de tudo para não perder seu império. Aliás, talvez uma das maiores falhas de Beleza Fatal seja ignorar suas raízes.

A psicologização de personagens é universal em narrativas, mas, ao mesmo tempo, exclusivas e próprias para determinados gêneros, entre eles, a novela. O desenvolvimento rápido da montagem com o próprio roteiro prejudica tramas paralelas, inicia e encerra partes faltando e se esconde em justificativas que até o mais passivo dos espectadores irá franzir uma sobrancelha. Por que só depois de 20 capítulos o personagem lembra que o espaço que ele frequentou desde o começo tem câmeras de segurança? Os dois fulanos que brigaram, em duas cenas seguintes, já dialogam como se não houvesse esse momento; portas conferidas pelo olho mágico em alguns momentos e outros não, convenientemente; e o próprio plano de vingança ainda parece rodar em círculos dentro de uma pequena proposta, com chantagens e perjúrios que não chegam a lugar nenhum. Por um lado, alguns experientes conseguem passar por cima dessas lacunas e se destacar positivamente, como a veterana Julia Stockler – protagonista do aclamado Vida Invisível – que aqui se aventura interpretando Gisela Argento, esposa de Rog, que consegue extrair do pequeno ao maior sentimento dessa personagem e se concretizando como a maior e melhor a explorar o gênero vingativo. Pode ser o caso mediano da prodígio Carol (Manu Morelli), neta da família que se perde em muitos sentimentos para passar em pouco tempo de aproveitamento, da dançarina Andreia (Kiara Felippe) que nem tem muita oportunidade de se mostrar, mas se concretiza com o protagonista do triângulo amoroso, Gabriel (Enzo Romaní), que nem com o maior tempo de tela consegue fugir de uma construção bem unidimensional da figura protetora.

É claro que chegamos em Camila Pitanga. Afastada há alguns anos, é definitivamente o seu retorno aos folhetins. Com maneirismos, frases recicladas, mas trazendo inúmeros bordões que em qualquer novela das 7 com picos de audiência já teriam caído na boca do povo, debocha de todos e de quem assiste, afinal, nas palavras da mesma “vocês são a TV Aberta, eu, o streaming”. A atriz entra numa narrativa de despojamento total da sua personagem, e não se engane, ela não se leva a sério, por trás de todo botox ela carrega consigo a ousadia e falta de pudor para acabar com qualquer em seu caminho, mas também fragmentos de memória de um passado enterrado, que a tiram de um lugar maniqueísta. A jornada que ela e Sofia passam durante a vingança nos subverte ao ponto de esquecermos para quem estávamos torcendo de início. A visão no texto de Montes não tem pena em nenhum momento ao retratar a vingança por qualquer meio necessário, pela deterioração do ser com cenas explícitas que exploram o sexo e a luxúria do mundo burguês como degenerativo, que marca, fere e acusa, e é claro que uma série que retrata o mundo da beleza e das digitais influencers não deixaria de mostrar um figurino à altura. Os grandes saltos das mulheres – que se apresentam física e moralmente superiores aos homens – e a maquiagem como modo de esconder cicatrizes. O que ele compensa no choque das imagens, peca no valor linguístico original, que não se permite dramatizar os personagens, explorar seus conflitos internos e sua relação com o mundo exterior.

 

Assim, Beleza Fatal conclui seu último capítulo nesta sexta-feira, mostrando um verdadeiro experimento sobre o quão possível é a junção de linguagens diferentes. O ritmo de série que acelera, instiga e joga o espectador nas situações são abafadas por uma novela que necessita da dramatização e do conflito como base para persistir no seu tema. Por outro, o melodrama da obra, carregado de influências de mesmos projetos que foram recordes de audiência anos atrás, se sufocam por uma montagem mais preocupada em chocar o espectador com as cenas do que também fazê-lo entender porque aquilo chegou ali. Por fim, essa e mais algumas pioneiras são uma das novas visões que a telenovela pode alcançar hoje, mas Beleza Fatal mostra que talvez não seja um caminho alcançado a curto prazo, se possível ser.

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