Crítica escrita por Sophia de Lacerda 

Sinopse: Gato é um animal solitário, mas quando seu lar é destruído por uma grande inundação, ele encontra refúgio em um barco habitado por diversas espécies, tendo que se juntar a elas apesar das diferenças.

Flow tem uma mensagem universal, que pode ser compreendida sem nenhuma palavra falada. O filme não tem diálogos e os personagens não tem nome, mas facilmente conseguimos identificar e diferenciar suas personalidades, tanto pela espécie a que pertencem – o labrador caloroso e carente e o gato preto desconfiado e reservado – tanto pelos detalhes na expressão corporal de cada um desses animais. O gato preto é o personagem principal da história, somos introduzidos a esse novo mundo enigmático a partir dele. 

O universo de Flow parece com uma espécie de paraíso pós-apocalíptico, com alguns vestígios de habitação humana pregressa: estátuas de animais, ruínas e a casa que o gatinho protagonista usa para dormir no começo do filme. Não sabemos quem era o dono dessa casa, apenas podemos deduzir que ele ou ela era entusiasta de gatos, considerando a quantidade de imagens desses felinos espalhados dentro e ao redor da casa – talvez fosse até um símbolo espiritual, mas isso não sabemos. A enorme enchente que dá nome ao filme obriga o gato solitário e medroso a sair do conforto daquela residência, também aproximando-o de outras espécies.

O funcionamento do mundo permanece desconhecido pelo espectador, fator que mantém o filme intrigante. A ausência de qualquer mecanismo que dite regras específicas para este mundo, torna-o cheio de possibilidades. O diretor Gints Zilbalodis opta por não explicar a causa da enchente, nem situa espacialmente ou temporalmente esse universo. A enchente é simplesmente o fenômeno natural e narrativo que forçará os animais a uma capacidade de adaptação e convivência.   

A catástrofe natural exige o desenvolvimento de novas dinâmicas de relacionamento entre espécies totalmente diferentes. Dentro de um barco, acompanhamos a jornada do gato, da capivara, do cachorro, do lêmure e do pássaro. Cada um com uma personalidade muito distinta. O gato, que era acanhado, aos poucos vai cedendo a companhia dos outros animais, além de se tornar mais corajoso. Os laços formados aproximam-se de uma dinâmica de found family, conhecida como a construção de uma família através da amizade. Esse tipo de relacionamento não é inovador, principalmente na animação. Entretanto, o longa se apropria muito bem de uma estrutura já conhecida para criar novos significados e experiências.

Flow não deixa a desejar na construção de mundo e nos detalhes, mesmo com um orçamento baixo para animação e limitações técnicas. Os cenários são lindíssimos e dão pistas sobre esse mundo desconhecido, que parece ter uma forte influência espiritual. Os personagens se portam com bastante fluidez e a atenção aos detalhes favorece a conexão do espectador com eles. É difícil não se encantar com o gatinho, vendo as pupilas dele dilatarem e o peito palpitar um pouco mais rápido quando está com medo, ou, em outros momentos, ver os olhinhos dele brilharem com fascinação.    

Assistir a essa animação é uma experiência intuitiva e contemplativa. Assim como os animais, vamos seguindo o fluxo de cada acontecimento sem saber o que vem a seguir. É um storytelling visual lindíssimo, com estímulos sensoriais em detrimento de diálogos. A natureza é linda e assustadora, mas não é malvada. Flow não tem vilão, a aflição é o desconhecido, e o tempo inteiro navegamos por ele. Aquela frase clichê, que todo mundo já conhece, é bem aproveitada aqui: “mais importante que o destino é a viagem”. Em um filme cercado e ditado pela natureza, a escolha de adotar uma narrativa cíclica funciona muito bem – ela é melancólica e esperançosa ao mesmo tempo, dependendo do ponto de vista. Flow é tocante, encantador e misterioso na medida certa. 

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