Crítica escrita por Gabriel Cine
Sinopse: Arthur Fleck está institucionalizado em Arkham à espera do julgamento por seus crimes como Coringa. Enquanto isso, Arthur não apenas se depara com o amor verdadeiro, como encontra a música que sempre esteve dentro dele.
Coringa (2019), dirigido por Todd Phillips, na época de seu lançamento, gerou uma série de burburinhos e controvérsias sobre sua abordagem da violência, além de conquistar bastante apreço pela crítica. O filme foi premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza e rendeu um Oscar pela memorável atuação de Joaquin Phoenix. Agora, o diretor retorna para a sequência de forma ousada, realizando um musical/drama de tribunal, subvertendo ainda mais a percepção geral do público sobre o Coringa, personagem extremamente conhecido na cultura pop.
Já há algum tempo, a internet gerou um “meme” chamado Literally Me (Literalmente Eu), onde usuários (geralmente masculinos) declaram se sentir representados por figuras icônicas da cultura pop. O problema é que, ao analisar os personagens mencionados, encontramos figuras como Homelander, de The Boys (2019-Presente); Tyler Durden, de Clube da Luta (1999); Patrick Bateman, de Psicopata Americano, entre outros. E entre eles está Arthur Fleck, protagonista de Coringa. Todos esses personagens possuem características perigosas para que alguém se identifique com eles, pois exibem uma toxicidade masculina que, aparentemente, é admirada por um grande número de pessoas, reação muito problemática – até porque o Coringa sempre foi um vilão. O filme Coringa, desde seu lançamento, já gerava controvérsias por justamente colocar seu protagonista em um lugar que poderia incitar a violência. Ainda assim, foi um fenômeno de bilheteria, conquistando tanto o público quanto a crítica. Agora, o diretor retorna com a ideia de mais uma vez subverter o protagonista, aprofundando-se em sua psique e mudando completamente o gênero do filme.
Todd Phillips é um diretor acostumado a retratar homens transgressores em sua filmografia. Embora muito inspirado pelas obras de Scorsese e De Palma, Phillips tem muitas comédias em seu currículo, nas quais se utiliza de estereótipos da masculinidade para gerar humor, muitas vezes baseando-se na simplicidade e mediocridade do homem. Quando dirige filmes mais dramáticos, ele explora as ambições e os resultados das pressões sociais sobre a masculinidade. Em Coringa, o diretor faz uma amálgama dessas duas abordagens, aproveitando-se da falta de identidade do Coringa em outras mídias. Ele constroi Arthur Fleck, um personagem inicialmente regido por sua simplicidade, ingenuidade e mediocridade, que na conclusão resulta no Coringa, um vilão ambicioso e violento. O primeiro filme ofereceu uma direção intrigante (e polêmica), enxergando a sociedade como um ponto catalisador de violência revanchista, culminando na transformação de Arthur em Coringa. Agora, nessa sequência, o diretor subverte as expectativas, aprofundando o personagem Arthur separadamente em relação à entidade Coringa.
Há uma ousadia ímpar na narrativa de Coringa: Delírio a Dois (2024), pois, além de desconstruir a figura clássica do Coringa, estabelecida no primeiro filme, o longa decide também alterar seu gênero, transformando-o de thriller para um musical metalinguístico. Ambas as ideias são interessantes como fio condutor da trama, pois trazem frescor à história, mas precisam ser acompanhadas por uma direção afiada para fazer jus a elas. O longa foca no romance entre Arthur e Lee (ou Harley Quinzel, interpretada por Lady Gaga), e a interação entre os personagens é pautada pela música, elemento que está presente fortemente na trama desde o filme anterior. No primeiro filme, Arthur dança constantemente para externalizar seus pensamentos — pensamentos esses que eram inacessíveis ao público. Na sequência, ao conhecer Lee, que tem o hábito de cantar, somos convidados a adentrar a mente de Arthur e observar sua musicalidade frontalmente. Embora seja uma ideia promissora, a brusca mudança de tom entre a sobriedade do primeiro filme e a ludicidade do segundo soa destoante, principalmente porque Todd Phillips não demonstra grande habilidade em dirigir as cenas musicais. O gênero musical está intrinsecamente ligado ao espetáculo e costuma ser onírico. Adentrar a mente de Fleck era a maneira perfeita de trazer essa oniricidade de forma convincente, mas, salvo uma cena que se passa no tribunal, as outras músicas nunca atingem seu potencial máximo, permanecendo na mediocridade e causando uma sensação de redundância.
Lee é o pivô para essa redundância, infelizmente. A personagem tem a única e exclusiva função de incentivar Arthur a transgredir a si mesmo mais uma vez. Embora seja compreensível que essa seja uma característica comum do arquétipo do interesse amoroso, a persistência de Lee incomoda por nunca demonstrar uma real mudança na trama. Além disso, sua presença é frequentemente forçada na narrativa, aparecendo em locais onde jamais conseguiria estar, como em uma cela de prisão de alta segurança, ou cometendo delitos publicamente, sem que tais ações sejam percebidas por outros personagens. Por alguns breves momentos, a personagem se torna interessante ao remeter aos movimentos de idolatria de figuras nocivas na sociedade, um tema bastante em voga nos últimos anos com o boom do conteúdo de true crime. Nesses momentos, Lee menciona as consequências das ações de Arthur no primeiro filme — consequências que teriam funcionado melhor se fossem mostradas visualmente, em vez de apenas citadas.
Tal redundância também é observada no roteiro, já que Arthur é desconstruído e reconstruído repetidamente, o que resulta em várias cenas onde o personagem duvida de si mesmo, para logo em seguida reafirmar quem é, apenas para duvidar novamente e ficar nesse ciclo vicioso. O filme apresenta ótimas ideias, mas a execução delas muitas vezes deixa a desejar. O grande problema de Coringa: Delírio a Dois é a análise que o longa não faz. Ao perder tanto tempo julgando seu predecessor, ele abandona as questões interessantes que levanta. Ao questionar a idolatria de personagens violentos e falhar em aprofundar o tema, o filme perde a chance de justificar sua própria existência. “Se este filme existe apenas para debater seu antecessor, por que criar elementos promissores que jamais serão explorados?” Esse pensamento reverbera por todos os 140 minutos de duração, acompanhados de um certo “mau gosto” ao retratar seu protagonista. Arthur, outrora uma figura imponente, é filmado de maneira tão sofrida e miserável que a abordagem beira o niilismo dos personagens de Darren Aronofsky. Mesmo elementos mais leves que estavam no primeiro filme retornam aqui de forma melancólica e pessimista, destoando do tom de musical romântico criado — a cena que mais exemplifica isso é a de Gary, personagem que depõe no tribunal.
Embora ousado e irreverente, Coringa: Delírio a Dois alcança o status de uma das premissas mais inovadoras do ano, mas acaba desperdiçado ao tentar suprir um debate que já havia sido concluído no primeiro filme. A ideia de que o “delírio” do título se refere à relação público-filme, representada por Harley e Arthur, é sagaz, mas apenas arranha a superfície do que poderia ser uma excelente trama. “Eu achava que minha vida era uma comédia, mas agora vejo que é uma tragédia”, diz Arthur no primeiro filme. Agora, podemos dizer que sua vida, na verdade, era uma comédia mórbida transvestida de tragédia.