Crítica escrita por João Pedro Ferreira.
Sinopse: Em fevereiro de 1996, durante um dos temporais mais impiedosos que atingiu a cidade do Rio de Janeiro, uma equipe dos bombeiros recebe um chamado para evacuar um asilo com risco de desabamento. Ana, uma jovem bombeira afastada após sofrer um ataque de pânico em uma operação, se vê retornando à sua antiga equipe de resgate. Ao chegarem ao local, os bombeiros descobrem que os misteriosos moradores do asilo têm outros planos com a chegada da chuva. Ana terá que enfrentar seu próprio passado para sobreviver e salvar os outros antes que seja tarde demais.
O filme mescla eventos reais com elementos de horror, tendo como base a enchente do Rio de Janeiro em 1996, uma das mais devastadoras da história da cidade. As chuvas intensas, que ocorreram em um curto período, causaram a cheia de diversos rios, resultando em deslizamentos de terra e inundações em várias áreas, especialmente nas favelas e comunidades mais vulneráveis. A tragédia deixou muitos desabrigados, causou danos significativos à infraestrutura e resultou em um considerável número de fatalidades. As imagens das ruas alagadas e das pessoas tentando salvar seus pertences permanecem marcadas na memória coletiva da cidade. Embora o filme se baseie nesse incidente, não explora a situação geral do Rio de Janeiro, concentrando-se principalmente no asilo, que é o cenário central da narrativa. O horror presente na obra é comparável ao “horror cósmico” de H.P. Lovecraft, que enfatiza a insignificância da humanidade diante de forças incompreensíveis e alienígenas. Lovecraft aborda a fragilidade da sanidade e a pequena escala do ser humano no vasto universo, apresentando entidades que desafiam a lógica. Suas obras combinam terror psicológico com atmosferas de suspense e desespero, além de introduzirem mitologias complexas, como os Mitos de Cthulhu. A sua escrita é caracterizada por descrições vívidas e uma sensação de inevitabilidade. No longa, a presença de tentáculos, semelhantes aos escritos por Lovecraft, associa-se a criaturas e entidades cósmicas, simbolizando a ideia de que esses seres estão além da compreensão e controle humanos. O filme, assim, se torna um convite à reflexão sobre o que realmente significa estar à mercê de forças maiores, sejam elas naturais ou sociais. Um exemplo disso é a protagonista, que carrega um trauma profundo relacionado ao incêndio que destruiu sua casa no passado.
A tentativa de mesclar horror cósmico e terror psicológico pode levar a uma saturação de elementos que, em vez de se complementarem, acabam se sobrepondo. A construção de tensão, fundamental para o suspense, é comprometida por desvios narrativos que desviam a atenção do espectador. O terror psicológico, que depende da exploração profunda das emoções e medos internos, pode se perder em uma narrativa dispersa. O horror cósmico, que requer uma atmosfera de incerteza e desespero existencial, pode ficar diluído em meio a tantas referências e subtramas, fazendo com que o impacto emocional se perca. Por exemplo, Ana se vê confrontada com seu passado, repleto de traumas que surgem à medida que a situação se agrava no asilo. Essa luta interna é crucial, mas se perde em meio à confusão causada pelos eventos sobrenaturais que cercam o asilo. A falta de uma linha narrativa clara faz com que o público, em vez de se sentir imerso e envolvido, possa ficar mais perplexo do que intrigado, frustrando as expectativas de uma experiência verdadeiramente aterrorizante. Assim, a ausência de um comprometimento com um único estilo compromete a eficácia da história, resultando em uma experiência que pode deixar os espectadores desejando uma exploração mais profunda e significativa das emoções e medos apresentados.
O filme opta por não empregar jumpscares, uma decisão que não deve ser vista como um defeito, uma vez que esse recurso é relativamente simples de implementar. Embora os jumpscares possam ser eficazes para gerar sustos imediatos, seu uso excessivo tende a resultar em uma experiência de horror superficial, incapaz de explorar emoções e medos mais complexos. Quando bem elaborados, esses sustos podem intensificar a experiência de terror; no entanto, é a combinação de diversos elementos que realmente os torna memoráveis e impactantes. A escolha de evitar jumpscares visa elevar a qualidade da produção, proporcionando uma forma de terror que ressoe de maneira mais profunda com o espectador. Ao adotar uma abordagem sutil e psicológica, o filme desafia as expectativas do público e cria um espaço para uma reflexão mais rica sobre o verdadeiro significado do medo. Essa decisão evidencia que a eficácia no gênero horror transcende os sustos momentâneos, investindo na criação de uma atmosfera inquietante que perdura na mente dos espectadores. Assim, a obra não apenas reavalia o uso de jumpscares, mas redefine o que significa provocar medo, convidando o público a uma experiência mais enriquecedora.
Marjorie Estiano oferece uma atuação poderosa e intensa como Ana, uma jovem bombeira que enfrenta o trauma de um ataque de pânico e de sua infância. Sua capacidade de transmitir a vulnerabilidade da personagem é notável, capturando a tensão emocional ao retornar à sua antiga equipe de resgate. Estiano equilibra momentos de medo e coragem, permitindo que o público se conecte com sua luta interna. Seu olhar é expressivo e repleto de emoção, refletindo uma ampla gama de sentimentos, desde fragilidade e desespero até determinação e força. Em momentos de vulnerabilidade, seus olhos revelam a dor e o conflito interno, enquanto, em cenas de ação, transmitem uma intensidade que demonstra sua resiliência. Os gritos de Marjorie são igualmente impactantes e significativos, comunicando a urgência das situações que Ana enfrenta. Eles ressoam de maneira autêntica, seja ao clamar por ajuda ou ao incentivar os demais, aumentando a tensão das cenas. Essa habilidade de utilizar tanto o olhar quanto a voz como extensões de suas emoções torna sua atuação um dos pontos altos do filme, evidenciando não apenas a interpretação de uma bombeira, mas também a jornada de uma mulher em busca de redenção e força. Um exemplo marcante dessa intensidade ocorre em uma cena em que Ana grita com um morador do asilo. Neste momento, a frustração e o desespero dela se tornam palpáveis. Os olhos de Estiano brilham com uma mistura de dor e determinação, refletindo não apenas a tensão da situação, mas também o peso emocional que carrega. A forma como ela expressa a urgência da necessidade de ajuda ressoa profundamente, destacando sua habilidade de utilizar a voz como uma extensão de suas emoções. Os gritos são não apenas um apelo por socorro, mas também um grito de guerra em sua luta pessoal.
Historicamente, o Brasil não teve uma produção tão vasta de filmes de horror em comparação com outros gêneros cinematográficos, como a comédia ou o drama. Essa limitação pode ser atribuída a uma combinação de fatores, como a dificuldade de financiamento, a preferência do público por narrativas mais leves e a tradição do cinema brasileiro em abordar questões sociais e políticas. O horror, muitas vezes visto como um gênero menor, lutou para encontrar seu espaço em um cenário que prioriza histórias que ressoam com a realidade cotidiana. No entanto, é encorajador observar que, nos últimos anos, o gênero tem ganhado força e relevância na cena cinematográfica nacional. Filmes como As Boas Maneiras (2017) e Morto Não Fala (2018) não apenas demonstram um apetite crescente por narrativas de horror, mas também refletem uma evolução significativa em termos de produção e recepção do público. Ainda, essas obras não apenas utilizam o horror como um veículo de entretenimento, mas também abordam questões profundas, como identidade, classe social e a dualidade da natureza humana. Contudo, é importante questionar se essa crescente visibilidade do gênero realmente representa uma mudança duradoura ou se é apenas uma moda passageira. Além disso, enquanto alguns filmes têm se destacado, muitos ainda enfrentam barreiras na distribuição e no reconhecimento crítico, limitando sua capacidade de impactar de forma mais ampla. Portanto, embora a produção de horror no Brasil esteja em ascensão, ela ainda precisa superar desafios significativos para consolidar seu lugar de forma mais permanente na cinematografia nacional.
Abraço de Mãe (2024) representa um avanço considerável para o horror no Brasil, explorando questões profundas como trauma e vulnerabilidade. O desafio reside em consolidar a relevância do gênero em um cenário cinematográfico que frequentemente prioriza outras narrativas. Embora o filme constitua um marco na evolução do horror nacional, sua eficácia depende de uma estrutura narrativa mais coesa que una suas diversas influências sem comprometer a profundidade emocional. Dessa forma, a obra instiga uma reflexão sobre a fragilidade da condição humana, ao mesmo tempo em que sublinha a necessidade de um compromisso mais rigoroso com a construção narrativa, visando garantir que o impacto do horror seja verdadeiramente significativo e duradouro.