Frame do filme Meõ nire o kaprãn – A Mulher Tartaruga (2017), de Bepkadja Kayapó.

Nos últimos anos, temos visto que os cinemas indígenas estão em alta, com cineastas realizando diversos filmes e participando de mostras e festivais de cinema pelo Brasil e pelo mundo. Mas você já parou para pensar na diversidade das narrativas produzidas pelos realizadores indígenas? O formato mais produzido parece ser o de documentário, mas também há povos que realizam filmes de ficção. Por isso, o OCA traz aqui algumas informações sobre essa diversidade de filmes entre os povos indígenas.

Desde a apropriação audiovisual pelos povos indígenas ao final do século XX, o cinema realizado por eles tem se consolidado como uma ferramenta poderosa de luta e resistência cultural e política, assim como uma forma de preservar a memória por meio das imagens e sons. Ao longo das últimas décadas, as comunidades indígenas, em diferentes partes do mundo, têm utilizado o audiovisual para contar suas próprias histórias, reescrever narrativas e afirmar suas identidades. No Brasil, essa produção é marcada por uma rica diversidade de formatos, que vai além do documentário, tradicionalmente associado à preservação cultural, e se expande para a ficção, criando novos horizontes para a imaginação e a representação.

Historicamente, o documentário vem desempenhando um papel central para os povos originários, já que, ao longo de boa parte do século XX, os seus direitos de representação nas imagens e sons lhes foram negados pelas representações audiovisuais estereotipadas realizadas por cineastas não indígenas. O documentário, portanto, surge como uma oportunidade para que possam elevar e ecoar suas vozes, contando suas próprias histórias e registrando seus cotidianos, rituais e mobilizações políticas. Além disso, ao levarmos em consideração que os povos indígenas são tradicionalmente ágrafos, ou seja, sem a característica da escrita, logo percebemos o quanto o registro documental se torna importante, pois passa a ser utilizado como forma de guardar a memória por meio das imagens e sons

Por isso, filmar rituais, tradições e modos de vida vem sendo uma forma de não apagar suas culturas, especialmente por conta das forças coloniais e modernas. Filmes documentais têm sido essenciais para registrar e preservar não só as práticas culturais, mas também a luta por direitos territoriais, políticos e ambientais. Um exemplo emblemático é o documentário Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! (2020), de Isael e Sueli Maxakali em colaboração com Carolina Canguçu e Roberto Romero, que retrata a luta do povo Maxakali pelo seu território. O filme denuncia o genocídio indígena e ecocídio no Brasil e apresenta a câmera como uma aliada na luta por justiça. Outro filme que se destaca é Força das Mulheres Pataxó da Aldeia Mãe (2019), de Caamini Braz e Vanuzia Bonfim, que traz a realidade da mulher Pataxó, mostrando suas lutas cotidianas pelo território e pela garantia dos direitos que diariamente lhes são negados.

Entretanto, apesar da importância do documentário, os cinemas indígenas também têm explorado o campo da ficção. A pequena quantidade desses filmes demonstra que ainda são produções em menor escala, mas que vêm tomando cada vez mais espaço no audiovisual. O que antes era um terreno dominado pela urgência documental em registrar a realidade de suas vidas, agora abre espaço para narrativas fictícias que, ao mesmo tempo em que inventam novos mundos, estão enraizadas em cosmologias e tradições indígenas. A ficção permite que os cineastas indígenas imaginem futuros possíveis, desenhem mitologias e construam narrativas decoloniais que possam romper com as formas tradicionais de representação impostas pelo cinema hegemônico.

Por exemplo, os cineastas começaram a perceber, na ficção, a possibilidade de registrar mitos de seus povos para que essas histórias não sejam esquecidas e possam ser repassadas aos mais novos de geração em geração. Lembra da característica da agrafia que acompanha os povos indígenas há séculos? Pois é, se antes os mitos eram repassados não através da escrita, mas através da oralidade, agora também há um novo meio de repassá-los: pelo audiovisual. Portanto, a inserção das imagens e sons como ferramenta de transmissão de saberes passa a representar um importante ponto de ruptura com a agrafia tradicional dos povos indígenas, possibilitando uma nova forma de perpetuar suas histórias e culturas.

A ficção, nesse sentido, vai além de um mero registro visual, pois se torna um espaço de reinvenção, no qual mitos ancestrais ganham novas interpretações e, ao mesmo tempo, são preservados para as futuras gerações. Essa prática desafia as lógicas coloniais e expande as formas de resistência cultural, fazendo com que o cinema não seja apenas um instrumento de memória, mas também de construção de futuros decoloniais, em que os povos indígenas reescrevem e ressignificam suas próprias narrativas. Dessa forma, o audiovisual ficcional surge, também, como uma poderosa ferramenta de luta, permitindo que suas vozes e histórias resistam ao tempo e às estruturas opressoras, enquanto se reafirmam como protagonistas de suas existências e de seus futuros.

Um exemplo disso é o filme Meõ nire o kaprãn – A Mulher Tartaruga (2017), de Bepkadja Kayapó, produzido no âmbito do Coletivo Beture Cineastas Mebêngôkre (PA), baseado em um mito Mebêngôkre chamado Meõ nire o kaprãn, que conta a história de dois homens que querem a mesma mulher, sendo que um tem poder de pajé para transformá-la em jabuti e levá-la consigo. Outro exemplo de ficção é o filme Aria Arimunu’u Iataí Rehe – Cuidando da Saúde do Itaí (2018), de Paky Awá Guajá e Paranan Awá Guajá, realizado na aldeia Tirakumbú, do povo Awá Guajá, no Maranhão. A obra conta a história de Itaí, um menino que saiu para caçar passarinho, mas acabou adoecendo, de forma que acompanhamos o seu itinerário terapêutico para obter saúde dentro da aldeia. Ambos os filmes, ao ultrapassarem as fronteiras do documental, criam um espaço em que o real e o mítico coexistem, ampliando as possibilidades de como as culturas indígenas podem ser retratadas no cinema.

Esse diálogo entre documentário e ficção amplia o leque de formas com que essas histórias podem ser contadas e, também, desafia as fronteiras de gênero dentro dos cinemas indígenas. Ao utilizar a ficção, os cineastas indígenas não estão simplesmente escapando da realidade, mas reafirmando suas cosmologias e a complexidade de suas visões de mundo. O que pode parecer, em um primeiro momento, um rompimento com o “realismo documental”, na verdade, é uma extensão das próprias experiências indígenas, no qual o espiritual e o concreto não são polos opostos, mas partes integradas de uma mesma realidade.

A diversidade de formatos e narrativas nos cinemas indígenas reflete a riqueza dessas culturas e suas formas de expressão. Ao navegar entre o documentário e a ficção, os cineastas indígenas desafiam as convenções do cinema ocidental e propõem novos modos de ver, ouvir e entender o mundo, questionando as fronteiras entre o real e o imaginário, o fato e o mito, mostrando que a luta por representação vai além do registro documental, pois também passa pela capacidade de imaginar futuros possíveis, sonhar outras realidades e afirmar a continuidade de seus modos de vida. É nítido como os cinemas indígenas continuam se expandindo, reafirmando sua potência criativa e seu papel essencial na luta pela preservação cultural e pela construção de novas narrativas. Seja pelo olhar atento do documentário ou pela inventividade da ficção, essas produções rompem com a invisibilidade histórica imposta a esses povos e garantem que suas vozes continuem a ecoar nas telas e na vida societária.

Ir para o conteúdo