Crítica escrita por Maria Eduarda Trindade para a cobertura do 22º Festival Brasileiro de Cinema Universitário – FBCU

Madrugada (2022, Gianluca Cozza e Leonardo da Rosa)

O curta dirigido por Gianluca Cozza e Leonardo da Rosa abriu a 2ª sessão da Mostra Competitiva Nacional do FBCU, oferecendo um retrato da noite no porto de Rio Grande. Sem um fio narrativo delimitado, Madrugada acompanha alguns homens em sua rotina perigosa de recolher a soja derramada nos trens e revendê-la. O filme não se preocupa com a clareza na exposição dos fatos e diálogos, e sim com a representação crítica daquela realidade através da construção visual e sonora.

O cenário noturno é o elemento-chave do curta. As luzes alaranjadas da cidade e as lanternas dos trabalhadores iluminam os ambientes, que são apresentados de maneira quase distópica através da escuridão, dos planos abertos e das sombras. Um dos destaques é o momento em que vemos apenas a silhueta dos homens em cima dos vagões em movimento, ressaltada pela luz dos postes ao fundo. Nesse sentido, o filme consegue criar uma forte atmosfera com excelência quando o aspecto visual se junta ao desenho de som inquietante, repleto de ruídos repetitivos e sons incomuns. Em Madrugada, o território deixa de ser representado simplesmente como é, mas como os personagens o enxergam. Perto daquela imensidão, os homens não são nada. As conversas triviais entre eles e a situação precária dos locais que eles frequentam também contribuem para esse contraste e para esse sentimento de insignificância em relação ao meio e, pensando mais a fundo, à sociedade. E todos esses elementos culminam na sequência final, em que um dos homens caminha pelo porto escuro, aparentemente sem direção, ficando cada vez menor quando em comparação com aquele espaço e com a intensificação dos ruídos.

Apesar de contar com apenas 19 minutos de duração, o filme parece se estender para além desse tempo, resultado de sua estrutura mais demorada e imersiva. Assim, pode-se dizer que a montagem foi bem sucedida ao explorar fielmente aquilo que se propôs a representar, adicionando um tom mais reflexivo e sombrio para elaborar seu sentido, mas preservando a sensação de lentidão de acontecimentos, tal qual a dos homens em sua rotina. Madrugada não é necessariamente prazeroso de se assistir, mas, de qualquer forma, entretenimento não é sua proposta. Seu apelo está, principalmente, na construção sensorial de uma história onde a noite é o personagem principal e o final quase sempre não é feliz. 

Roger é um Micro-ondas (2024, Gabriel de Freitas e Guilherme de Freitas)

É bom me sentir útil”, diz Roger, depois de se tornar um micro-ondas. O curta dos irmãos Gabriel e Guilherme de Freitas é uma maneira inusitada de abordar a desilusão com a vida e a vontade de desistir de tudo. A solução desses problemas, em Roger é um Micro-ondas, é a “conversão eletrodoméstica”; mas seria essa a melhor solução?

O filme é um falso-documentário, onde acompanhamos a história de Roger, um estudante que, ao passar por dificuldades financeiras e pessoais, decide se tornar um micro-ondas como uma forma de eliminar todos os empecilhos intrínsecos à vida humana. Através de depoimentos divertidos com amigos de Roger, uma entrevista com um médico especializado nessa conversão e até gráficos informativos sobre a popularidade desse novo método transformador, o curta constrói um conceito tão absurdo com muita naturalidade, se assemelhando muito a uma reportagem de um programa de notícias. É essa oposição entre o bizarro e o familiar que confere o tom cômico da obra e diverte o espectador com sucesso.

Mas a cena final oferece uma virada que confere um caráter mais reflexivo àquela situação. Ao invés de abordar essa escolha de Roger somente como um fato engraçado (dado sua natureza absurda), o curta aborda também que essa conversão radical não foi tão positiva para o jovem, afinal. É possível perceber uma certa hesitação em suas falas durante o filme; e quando as câmeras da reportagem desligam, a repórter pergunta como Roger realmente se sente com sua nova vida, e ele revela que “sente falta de ser gente”. Uma longa pausa precede a entrada dos créditos, mudando completamente o tom estabelecido no início. O que antes era encarado como uma saída fácil e até divertida para seus problemas, agora é apresentado como motivo de arrependimento e angústia.

Roger é um Micro-ondas é um curta único em sua proposta. Isso pois essencialmente é uma história triste, embrulhada com um pacote divertido e inusitado. Apesar desse contraste de abordagens se dar de forma um tanto quanto súbita, quebrando totalmente com o tom cômico construído durante a reportagem, o filme consegue divertir ao mesmo tempo que provoca reflexão, o que confere uma maturidade à obra que o espectador não espera quando lê o título.

Os Peixes Mais Lindos do Mundo (2023, Gabriel Saraiva e Gabriela Pazini)

Uma história sobre se sentir estagnada em um mundo em constante movimento. Os Peixes Mais Lindos do Mundo, curta de Gabriel Saraiva e Gabriela Pazini, une o cenário muito brasileiro da Baixada Fluminense ao famoso gênero de filmes coming-of-age, apostando nesses temas para envolver e conversar com o espectador. 

O filme acompanha Catarina, uma jovem de Caxias que está na fase em que precisa se encontrar e achar seu caminho, mas ao mesmo tempo ela percebe que crescer destruiu suas esperanças e sonhos que tinha para o futuro. O tempo parece passar muito rápido e ela não sabe lidar com essa pressão. Além disso, a morte de sua mãe ainda afeta muito a menina e contribui para essa visão pessimista do mundo que ela criou. Sua melhor amiga, Erica, é sua confidente, com quem compartilha suas inseguranças; mas até essa relação é abalada quando Erica anuncia que foi aprovada no vestibular e Catarina se sente “atrasada” em relação à ela, ocasionando uma briga entre as duas. Assim, não resta muita positividade na vida da protagonista, o que é demonstrado constantemente durante o curta através de falas da garota.

No meio de toda essa confusão interna, Catarina desenvolve uma grande obsessão por peixes. Eles parecem ser o jeito que ela encontrou de escapar um pouco da vida real, uma forma de preencher o buraco que existe dentro dela. Um dos momentos de destaque é, inclusive, quando ela está em sala de aula e começa a imaginar um peixe nadando na parede, representado para nós em animação. Por que esses animais especificamente? Isso não é esclarecido explicitamente, mas algumas pistas nos ajudam a entender a razão dessa identificação: “Peixe pode nadar pra onde ele quer, até pra longe”, diz Catarina. A liberdade de ser e ir para onde quiser parece bem apelativa quando em comparação com o peso cruel da realidade do ambiente onde mora, que pode ser sufocante.

Sua avó é quem consegue penetrar essa camada defensiva de Catarina e ter uma conversa onde a garota pudesse realmente se abrir e falar sobre sua mãe e seus receios. Essa conversa é o mais próximo de uma resolução que o curta apresenta para o conflito da jovem, o que particularmente acho que poderia ter sido resolvido de outra maneira, talvez com uma abordagem menos literal.

O curta-metragem retrata o crescimento de forma bem abrangente, tentando abordar diversas vertentes ao mesmo tempo: o luto, a desilusão, a amizade, a relação com a família, a situação econômica-social… mas consegue desenvolver uma narrativa fechada e coesa mesmo assim. Sem contar com a direção de arte que é muito bem trabalhada em todas as cenas. Os Peixes Mais Lindos do Mundo é um bom filme, mas talvez seria mais instigante se deixasse algumas questões em aberto, investindo menos em diálogos e ainda mais na representação subjetiva dos sentimentos, o que funcionaria muito bem já que os elementos visuais são o ponto forte do curta.

Mantiqueira (2023, Beatriz Tadioto)

Mantiqueira, curta de Beatriz Tadioto, é uma narrativa movida pela falta; uma falta que gera dúvidas e anseios, tanto nas personagens quanto no espectador. A partir desse conceito, conhecemos Luísa e Ana, mãe e filha, respectivamente, que visitam a casa da mãe de Luísa, que está no hospital. Mas essa visita acaba revivendo memórias de uma relação materna muito complicada.

Desde o início do curta é possível perceber uma atmosfera inquietante, uma estranheza na forma como os planos se sucedem e na escolha dos enquadramentos. De fato, muitas das cenas são filmadas muito de perto, o que causa agonia e um sentimento de que nem tudo está sendo mostrado. Essa escolha é bem apropriada ao filme, visto que realmente muitas das situações não são explicadas com muita clareza, priorizando a interpretação individual de cada espectador.

A casa da mãe de Luísa (avó de Ana) é empoeirada e até misteriosa, de certa forma. Ana tenta entrar no escritório de sua avó, explorando a casa com muita curiosidade, mas Luísa não deixa. A mulher parece estar frustrada de ter que voltar àquele ambiente, que com certeza não desperta seus melhores sentimentos. Além dessa visita ao passado, Luísa está grávida de seu segundo filho, o que somente reforça o tema da maternidade predominante no curta. Quando ela encontra fotos suas de quando era criança, tiradas por sua mãe, ela se sente mal e se afasta dessa lembrança, pois seja lá qual for o problema que as duas tinham (que não é esclarecido no curta) parece que Luísa não deseja que todas essas emoções voltem à tona e interfiram em seu jeito de ser mãe e em sua relação com os filhos. Esse conflito interno é representado sem diálogo ou narração, somente por olhares e jogos de câmera e montagem; e é isso que torna o momento mais intenso ainda, pois não temos como saber o que exatamente passa pela cabeça da mulher.

Mas o clímax do curta, quando a mãe de Luísa morre, representa a dor da protagonista de forma muito material e clara: luzes vermelhas, vidros estilhaçados, objetos jogados pelo escritório da mãe, e a mulher deitada no chão no meio disso tudo. O cenário traduz a perda de controle total de uma mãe, mas que naquele momento era apenas filha. Entretanto, rapidamente precisa reassumir seu papel para confortar Ana. 

Mantiqueira é um fragmento da complexidade da maternidade, representada de forma tão crua que pode parecer pessimista ou cruel, mas que é a verdade. Nesse sentido, o filme não busca esconder nada. Pelo contrário, todas essas pistas e falta de informações são vestígios de uma jornada que não tem uma resposta correta ou uma forma certa de acontecer. Ela simplesmente acontece, quer estejamos preparadas ou não. 

Ir para o conteúdo