Crítica escrita por Sophia de Lacerda para a cobertura da 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.
Sinopse: “Peréio, eu te odeio” retrata a vida do ator Paulo César Peréio de forma bem-humorada através de relatos de amigos, familiares e parceiros de cena. O filme é um passeio tanto pela vida de Peréio, quanto pela história do cinema brasileiro. Peréio filmou com grandes diretores e fez parte de importantes filmes da cinematografia nacional.
Mau caráter, fedido, sem noção, repugnante, em suma: insuportável! É assim que os entrevistados se referem a Paulo César Peréio, o personagem principal do documentário “Peréio, Eu Te Odeio”. Conhecido como um dos maiores intérpretes do cinema brasileiro, Peréio foi ator de teatro, locutor e atuou em mais de 60 filmes, muitos deles icônicos como Terra em Transe (1967), A Dama do Lotação (1978), Eu Te Amo (1981), entre muitos outros que ficaram marcados para a história do cinema. Foi dirigido por grandes diretores como Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Hugo Carvana, Ruy Guerra e Hector Babenco. Em contraponto com esse incrível legado para a arte e um talento excepcional na atuação, o ator ganhou a fama de ter uma personalidade, no mínimo, controversa.
O título já anuncia que não será um documentário cheio de sentimentalidades, que transforma seu personagem em herói e higieniza sua história. Muito pelo contrário, ouvimos relatos absurdos de outros atores, diretores, familiares e ex-esposas que são convidados a despejar ódio ao ator para a câmera. Toda essa sinceridade transporta os entrevistados para um lugar de vulnerabilidade, eles narram as enrascadas que Peréio os colocou e não deixam de admitir que foram, às vezes, cúmplices das loucuras dele. As histórias são hilárias: um acidente no Túnel Rebouças que parou o Rio de Janeiro, Peréio implorando para ser preso após ser flagrado com cocaína, colocando os amigos em perigo por conta das drogas e bebidas e ainda se recusando a ter uma rotina de higiene, o que causava tensão nos sets de filmagens. Hugo Carvana e Ruy Guerra, parceiros de trabalho e amigos, fazem questão de ressaltar o comportamento imprevisível e explosivo de Peréio nas filmagens. Ele chegava atrasado e às vezes nem chegava, vinha direto da noitada cheirando mal a ponto do figurinista ter que dar banho nele a força, e até mesmo induzia outras pessoas da equipe a agir da mesma forma irresponsável.
O filme dispensa o caráter linear, não sabemos, por exemplo, como Peréio cresceu, como eram seus pais ou como essa habilidade para atuar se desenvolveu. Allan Sieber, um dos diretores, assume o filme como processo de realização dele. O processo da documentação é narrado por Allan desde o contato inicial com o ator (que não era relacionado ao filme) e passa por todos os anos que eles acompanharam e perderam de vista Peréio, inclusive com a entrada de um novo diretor na equipe, Tasso Dourado, que ajudou a finalizar o filme. É claro que um documentário sobre uma pessoa tão exótica não sairia fácil do campo das ideias, foram 23 anos de muitas idas e vindas até o lançamento. Esse fator deixa o filme caótico e descontínuo, sem um fio narrativo que conduz a trama; pulamos de relatos sobre as besteiras dele para os relatos da realização do filme, como se fosse um diário, um desabafo. Mas, assim como Peréio, é um caos que dá certo no final se você conseguir aguentar o tranco. Os realizadores Allan Sieber e Tasso Dourado apostam no material de arquivo extenso e na excentricidade de seu personagem para a construção de um filme muito engraçado, então, não se pode esperar uma biografia informativa e convencional.
Um grande diferencial do filme, além do que já foi citado em termos de narrativa, é o uso de algumas cenas de animação para ilustrar os testemunhos contados sobre Peréio. Essa escolha torna tudo mais bem humorado e revela também uma marca estética pessoal de Allan, que é cartunista com um estilo bem característico de desenho. A edição e montagem do longa acompanham essa criatividade e respeitam seu personagem, implementando alguns efeitos sonoros que dinamizam as entrevistas e usando imagens de arquivo muito ricas dos filmes de Peréio, também para ilustrar suas bizarrices contadas pelos entrevistados. Essa escolha explicita uma questão que é muito comentada ao longo do documentário de como Peréio se faz de personagem de si mesmo, e que talvez ele tenha se perdido nessa persona grosseira.
O filme cumpre sua proposta irreverente e celebra a vida e carreira de Paulo César Peréio, talvez não haja uma forma melhor de homenagear uma pessoa como ele. É uma linha muito tênue entre admiração por um ator que atravessou décadas do cinema brasileiro e deixou um legado inquestionável e desprezo pela natureza corrosiva, explosiva e rebelde dele. Como os próprios conhecidos dele deixam claro, Peréio é o ator que amamos odiar e o ator que odiamos amar. É um documentário apaixonado por seu objeto que nos convida a chegar no final também gritando “Peréio, eu te odeio!”.