Crítica escrita por Marcelle Souza para a cobertura da 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.

Sinopse: 1972. Uma Kombi viaja de Amsterdã a Goa, na Índia. Essa viagem é a matéria-prima de Boom Shankar, único filme dirigido por Guará Rodrigues, personagem mítico do cinema brasileiro, tanto como ator, quanto por trás das câmeras, como assistente de alguns dos maiores diretores do período. Aquele filme sumiu antes de seu lançamento, mas alguns fragmentos recentemente encontrados são combinados com depoimentos de integrantes da viagem que recuperam o espírito libertário e pioneiro da época.

Na religião Hindu, quando o chilam é aceso, o hinduísta demonstra sua gratidão para o deus Shiva proferindo “Boom Shankar”, assim, Shiva sabe que o chilam está prestes a ser fumado e que outros hindus são bem-vindos a compartilharem do fumo. Assim como o compartilhar do fumo, o filme dirigido por Guará reúne a juventude hippie brasileira auto-exilada em razão da ditadura para também compartilhar do seu fazer cinematográfico, todos com o mesmo objetivo de fazer arte em liberdade.

O filme é documentário enquanto é ficção; Guará Rodrigues, Célia Nogueira, Toni Nogueira e Carlos Figueiredo viajam de Amsterdã até a Índia em uma Kombi no início da década de 1970 enquanto fazem um filme. Não se sabe o nome ou a narrativa do filme que o grupo realiza, mas as influências do cinema marginal e a livre forma de planos sem mise-en-scène pré-determinada são o suficiente para desejar que ele não tivesse se perdido para que hoje tivéssemos o acesso completo da obra. Sérgio Gag reúne a equipe e elenco do filme viajante para construir, em Boom Shankar, um acervo de memórias carinhosas e curiosas. A restauração do filme original, alinhada a depoimentos dos cineastas exilados, recupera a essência livre e experimental da época e dialoga diretamente com a relação de preservação que, infelizmente, ainda é negligenciada no cinema brasileiro e é através de Boom Shankar que o tema volta a ser discutido com perícia pela própria exemplificação do que poderia ter sido. 

Guará Rodrigues e Célia Nogueira se apaixonaram durante a viagem e estiveram presentes na sessão, podendo compartilhar da emoção de ter seu filme, que antes era dado como perdido, exibido 52 anos após a filmagem. Ter realizadores assistindo ao filme pela primeira vez, que marca não somente a sua própria história de amor, mas também a história de uma geração pioneira e essencial para a formação do caráter cinematográfico de denúncia brasileiro, transformou a exibição em um momento ainda mais especial. Boom Shankar é um filme sobre cinema para ser visto no cinema e possui uma força magnética tão grande que, se eu não fosse apaixonada por cinema, me tornaria apenas para ter a esperança de um dia presenciar novamente tamanha sensação de pertencimento a uma época que nem vivi e memórias que nem me pertencem. 

Guará se inspirou nas viagens de Marco Polo para dar início à viagem que seria cenário de seu filme, e os acontecimentos que por ela surgissem também estariam presentes em sua obra. Boom Shankar passeia pelas vivências do grupo de forma acolhedora, Carlão narra um evento em que, mediante às guerras árabes, a travessia até a Índia contava com inspeções por soldados na Kombi e eles elogiavam a limpeza dos viajantes. As histórias documentadas muito posteriormente à viagem fazem com que o filme possua um olhar maduro na mesma medida que inocente, as lembranças e ensinamentos adquiridos ganham outras significâncias ao mesmo tempo em que remetem à mesma curiosidade de se descobrir como indivíduo e artista. Boom Shankar é um filme receptivo: assisti-lo é como voltar para casa após um longo tempo distante.

Em síntese, Boom Shankar é um filme sobre uma juventude libertária e exilada que busca sua independência e expressão através do cinema. Eles são apaixonados pela sétima arte e fazem com que os espectadores também sejam. O longa é uma declaração ao fazer cinematográfico experimental e à autodescoberta de uma geração. 

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