Críticas escritas por Valquíria Albuquerque, Marcelle Souza e Victoria Silveira para a cobertura da 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.

Dona Biu por Valquíria Albuquerque

Dona Biu (2024), dirigida por Gabriela Toulois, foi a primeira animação da Mostra Contemporânea de curtas da 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto. A realizadora estava no local da sessão e relatou sobre o processo de desenvolvimento do filme, produzido ainda na universidade.

O curta apresenta um relato saudoso das memórias da narradora com a benzedeira de sua cidade do interior, conhecida como Dona Biu. Através da descrição de roupas que a senhora usava, o quanto ela gostava de comer “pinhão”, entre outras coisas, memórias da infância da narradora formam a identidade dessa idosa. Mesmo com apenas 4 minutos de duração, a obra consegue transmitir uma homenagem singela, além da beleza na simplicidade do cotidiano que ela viveu. 

Um destaque é o grafismo dos elementos da casa, com cores vibrantes, artigos religiosos e fotografias presentes nas mesas, estantes e paredes. O filme foi uma experiência divertida e comovente, e a identificação dessa personagem eleva a sensibilidade da obra, pois uma senhora como ela nos lembra de nossas avós e outras idosas na cultura brasileira, gerando saudade e nostalgia.

Pororoca por Victoria Silveira

O curta de animação Pororoca (2024), dirigido por Fernanda Roque e Francis Frank da Inhamis Studio e contemplado pela Lei de Incentivo à Cultura Murilo Mendes em 2019, foi projetado na telona do Cine Praça na Mostra contemporânea de curtas da 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, MG, no dia 26 de junho de 2024. O roteiro foi adaptado do texto A inacreditável história do pescador, escrito pelo dramaturgo Tarcízio Dalpra Jr., e veio da vontade de contar sobre um amor proibido a partir de uma metáfora essencialmente brasileira. 

Tem-se como personagens centrais a Baleia do mar, o Peixe-boi dos rios e a Pororoca – fruto de uma noite de romance dos dois. Pororoca é, na realidade, o nome dado ao fenômeno natural responsável pela agitação que se dá com o encontro das águas doce e salgada, muito comum na região Norte do Brasil em estados como o Amapá e o Pará. Há pouco, no ano de 2022, a Pororoca retornou ao encontro do mar com o Rio Araguari e foi comemorada por turistas e surfistas locais. A ação do homem havia acalmado a fronteira, que não tinha registro das características ondas longas em duração desde o ano de 2015. 

No filme, o grafismo da amazônia brasileira aliada à narração encorpada do ator Jomir Gomes dá o tom para esta trama folclórica e de gosto nacional. O momento de contemplação anterior à realização do amor de Baleia e Peixe-boi recebe uma animação diferenciada, com um fundo preto e contornos brancos. Nisso, a dinâmica do curta é acelerada e a tensão está em seu ápice, pois acompanhamos o processo de decisão do Peixe-boi de atravessar a fronteira, mesmo sabendo da vigia de Caboclo d’água e Netuno. Esta foi uma estratégia muito interessante tomada pelos animadores – os espectadores ficaram vidrados e intrigados. 

Justamente, quando descobertos, os amantes foram separados para sempre. O Peixe-boi foi mandado para o mangue, e a Baleia sofreu a perda. Pororoca, no entanto, viveu eternamente na região fronteiriça, longe de quaisquer desconfianças. Veio, assim, a agitação do encontro de rio e mar. A magia dessa metáfora só seria possível por via do cinema de animação, e a história, mesmo que não tão distante do clássico shakespeariano, conseguiu se tornar em algo verdadeiramente brasileiro nas mãos de Fernanda Roque e Francis Frank. 

Curacanga por Valquíria Albuquerque

Curacanga (2023), dirigido por Mateus Di Mambro, é uma animação singular, poética e extremamente brasileira, que consegue trabalhar com a temática do amor, sobrevivência e luto em uma narrativa tão profunda, através de uma figura mitológica nacional.

Dentro do ambiente de um sertão assombrado pela seca, Agostinho é um caçador que, quando machucado, conhece Juciara e se apaixona pela mulher melancólica, prometendo que a vingaria pela morte de sua irmã que havia sido assassinada por Curacanga, uma cabeça em chamas, para que os dois pudessem ficar juntos. 

A jornada de realização da promessa do protagonista, que precisa encontrar e matar tal figura, é repleta de mistério, misticismo e a forte presença do folclore brasileiro. Ademais, a definição do que seria a maldição de Curacanga é muito bem desenvolvida e adiciona uma camada poética e tom onírico na animação. 

A trilha sonora do filme é marcante por trazer tensão aos devidos momentos por meio de sons que lembram cantigas do Nordeste unidas a barulhos de batida de coração e ambientação dos cenários sombrios, além de criar uma aura depreciativa muito única à narrativa. Outro elemento notável foi a coloração da obra, com tons de preto, branco e cinza sendo predominantes, utilizando apenas o vermelho como exceção de cor, destacando a própria vilã e adicionando grandeza à essa figura.

A obra conquista o espectador e consegue prender a atenção em todo o seu decorrer, seja com a curiosidade de quem seria Curacanga e/ou a aflição do que a figura já tinha feito e poderia continuar fazendo. Ademais,  final foi um momento de realce que deve ser notado por sua grandeza,  tudo o que havia sido instigado anteriormente é posto em evidência, comovendo o público com a descoberta trágica de Agostinho.  

Lulina e a Lua por Victoria Silveira

Lulina e a Lua (2023), curta de animação dirigido por Alois Di Leo e Marcus Vinicius Vasconcelos e produzido pelo Estúdio Teremim, foi projetado na telona do Cine Praça na Mostra contemporânea de curtas da 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, MG. O filme retrata a história da pequena Lulina, uma menininha que enfrenta um momento decisivo de sua infância: seu irmão mais novo está prestes a nascer.

Para se distrair da sua realidade, Lulina desenha jangadas e uma tartaruga na areia, à beira do mar. A noite a encanta e Lulina aceita o desafio de ir até a lua para desenhar naquela enorme superfície branca intocada. Ali, a menina, dentre um e outro desenho, dá vida a um monstrengo de cor roxa.

De início, o monstro irrita e assusta Lulina com sua insistência de chegar perto e de brincar com ela. Com o tempo, Lulina vai se acostumando com a sua presença e se pega gostando daquele monstro. Foi assim que os diretores decidiram retratar a sensação da chegada de um irmão: o medo, a inveja e o amor, tudo junto.

Lulina, como qualquer criança, receia não ser suficiente. A gravidez de sua mãe colocou tudo em perspectiva, e quando as paredes do quarto, anteriormente repletas dos desenhos da menina, foram pintadas para dar boas-vindas ao bebê, Lulina deixou de se sentir querida pelos seus pais. A praia e o giz de gera eram seu refúgio. Tudo isso nos foi dito sem nenhuma palavra (sem narração, sem falas), algo que o curta realizou com excelência. Pequenos grunhidos e músicas foram capazes de transmitir a emoção da história para o público. Ao final da sessão, foi distinguível quem na platéia tinha ou não irmãos, só pelo brilho nos olhos e os sorrisos nos rostos. 

Dona Beatriz Ñsîmba Vita por Marcelle Souza

Dona Beatriz Ñsîmba Vita retrata de forma peculiar a imersão pessoal através de uma protagonista que está disposta, por meio da clonagem, em criar uma civilização de donas Beatrizes. O filme é uma animação com gráficos simples na mesma medida que belos, contendo um quê de surrealismo na forma e em seus traços que se encaixa como uma luva para a singular narrativa do curta. 

Com um livro de receitas, um liquidificador e uma forma igual à de seu corpo em versão miniatura, Dona Beatriz se automutila, liquidifica e derrama o líquido da clonagem na forma, o qual fica em repouso até que suas novas versões ganhem vida e se tornem parte do ciclo. O clímax da narrativa se dá a partir do canibalismo cometido por uma das clones contra outra, de maneira que a célula mãe – teoricamente a Dona Beatriz original -, a confina distante das outras. A escolha do roteiro para com o ato canibal é interessantíssima e muito inteligente a partir de uma análise em que ela estaria se alimentando dela mesma, consumindo seu próprio ser e imergindo cada vez mais em seu cerne, exatamente como os fundamentos de uma clonagem. Através de uma fuga, a clone canibal é descoberta pelos habitantes da cidade que invadem a residência de Dona Beatriz e provocam uma destruição.

Em meio ao confronto resultante da descoberta do plano de clonagem, a narrativa do clone se revela ser um ciclo, no qual a partir do momento que a célula mãe não conseguir administrar a clonagem corretamente (como quando deixou a canibal escapar), ela será substituída por outra que esteja apta a comandar o processo. Assim, nunca é revelado se de fato é a Dona Beatriz original que assistimos durante todo o filme ou o por que de Dona Beatriz querer se multiplicar, e com um final incerto, também não é dito nada sobre o que será do mundo com a nova população. Apesar de ser um filme confuso na narrativa, aprecio a força que todas essas incertezas possuem ao me despertarem o questionamento: uma civilização de inúmeras “eus” seria um lugar bom? ou melhor, um lugar onde eu gostaria de pertencer, apesar de tudo que ali habita ter vindo de mim mesma? Da mesma forma que as partes ruins da personalidade de Dona Beatriz possam ter se sobressaído durante o processo, temi que se fosse eu no lugar, o efeito seria parecido.

Ademais, a escolha da curadoria em agrupar o curta com outros quatro filmes que falam sobre afetos em diferentes manifestações, me trouxe um certo incômodo por não encontrar uma relação entre esse e os previamente exibidos. Em síntese, Dona Beatriz Ñsîmba Vita é um ótimo filme em termos de visuais e técnica, entretanto, o roteiro deixa a desejar por possuir uma storyline ótima, mas que ao se desenvolver para a tela, deixa muitas brechas que, apesar de intencionais, fazem o filme não alcançar o brilho que é capaz.

Ir para o conteúdo