Crítica escrita por Alexandre Berçott.
Sinopse: O filme acompanha um grupo de amigos que se encontra todos os anos para celebrar um aniversário. Este ano, em uma vila à beira-mar, algo está diferente: eles descobrem que o mundo vai acabar em apenas algumas horas. Após a notícia bombástica, estranhamente, o tempo que lhes resta parece acelerar e, ao mesmo tempo, permanecer interminável.
Elsa, interpretada por Claudia Gerini, fará cinquenta anos. Anda pela praia, chega a sua casa, e vamos de encontro a um diálogo onde sua filha, Anna (Alida Baldari Calabria), por conta de um exercício da escola, estuda algo relacionado ao tempo e à mitologia, diálogo esse que vem do nada e para em si mesmo, numa das muitas tentativas de se estabelecer, pelo texto, uma relação com a temática do filme. O filme em questão é A Ordem do Tempo, da italiana Liliana Cavani, adaptação do livro homônimo de Carlo Rovelli, uma obra que se preocupa em criar sentido — pelo texto —, não em sentir. Somos apresentados a um grupo de amigos que pertence a uma classe média pasteurizada, personagens mal construídas e sem subjetividade, que são sustentadas por estereótipos clássicos — arriscaria dizer, inclusive, que são desprovidas de humanidade, no sentido estético da coisa —, um grupo que sempre se reúne para comemorar o aniversário de um deles — no presente caso, o de Elsa. O grupo de amigos formado por Elsa, Pietro (Alessandro Gassmann), Enrico (Edoardo Leo), Paola (Kseniya Rappoport), Jasmine (Angeliqa Devi), Jacob (Fabrizio Rongione) e Giulia (Francesca Inaldi) se reúne, nesse ano, numa casa à beira-mar e será tomado pela assustadora eminência do “fim do mundo”. Ou deveria, já que as personagens são tão apáticas — e o filme também o é, de modo que parece não demonstrar o mínimo interesse, ou apenas um interesse emulado, pelo que filma —, que tal situação provoca o mesmo impacto que, por exemplo, uma dúvida sobre o que comer no jantar provocaria, ou a descoberta de uma grave mentira, ou o medo de uma possível queda de luz. O que quero dizer é que o filme é tão sem vida e ritmo que é como esperássemos alguma resposta desses seres vivos, quando eles só alcançam a apatia geral: apenas dizem o texto e representam — e não se trata da linguagem ou proposta do longa. A trama poderia ser qualquer uma: as atuações são inexpressivas, o tom do filme não muda, segue uma decupagem clássica que apenas apresenta, da forma mais óbvia e objetiva possível, o que acontece. Tal qual Enrico, o filme poderia estar falando do fim do mundo ou do cardápio do Pain de Sucre, que seria a mesma forma de contar, o mesmo modo. Mas atropelo um pouco as coisas e, antes de seguir, quero escrever brevemente do livro que Cavani adapta para o cinema.
Carlo Rovelli, físico teórico e especialista no estudo da gravidade quântica, publica, em 2017, A Ordem do Tempo, livro que traz questionamentos e outras concepções para se pensar o Tempo — em síntese, a não compreensão de sua natureza. Como uma certa tendência da ciência contemporânea, rememorando outros momentos da História, o autor abarca outras perspectivas — a filosofia, a poesia e a percepção humana — em seus estudos, questionando as concepções antigas já estabelecidas e, na parte final do livro, aborda a relação da humanidade com o Tempo, afirmando, por exemplo, que o mistério em torno dele diz mais a respeito do que somos do que ao Cosmos, além de se questionar se somos nós que existimos no Tempo ou o Tempo que existe em nós. Liliana Cavani, então, com seus 60 anos de vida dedicados ao cinema, parte das discussões propostas por Rovelli para construir um filme ficcional, com uma narrativa que busca explorar os impactos da notícia de um asteroide que se aproxima da Terra sobre a vida de um grupo de amigos.
Entretanto, o filme desenvolve uma história rocambolesca, cheia de elementos desnecessários e se perde. Ao final, ele parece ser um amontoado de ideias que nunca se concatenam ou existem plenamente. Isabel, interpretada por Mariana Tamayo, trabalha como empregada para Elsa e comenta com Anna de uma notícia que ouviu no rádio, ao que a menina ignora. É nesse momento que o mote da narrativa nos é apresentado. Acontece, no caso da personagem Isabel, algo que é interessante de discorrer nesta crítica: ela vive apartada do filme, está sempre aos cantos, silenciada, mesmo sendo a única personagem que demonstra algum impacto ao fato ou que, pelo menos, considera sua existência. Há uma questão de classe que o filme não explora, muito pelo contrário: ele parece desconhecer a existência de tal personagem. Sua narrativa, de uma mulher que teme o “fim do mundo” e quer ver seu filho e sua família, que estão no Peru, e precisa deixar o trabalho na Itália para tal, é extremamente mais interessante do que o melodrama amoroso ou qualquer outra questão que surge dentro do grupo de amigos completamente inerte a tudo. Inércia talvez seja uma boa palavra para A Ordem do Tempo. Inércia formal. Inércia das personagens. Inércia. Ao passo que Isabel teme por conta da notícia, Enrico é físico e estuda a aproximação do asteroide, com uma velocidade tal que distorce o tempo, da Terra. É ele quem explica, a todos, o que ocorre. E é ele, que vai à comemoração apenas após saber da presença de Paola — seu envolvimento amoroso, que se torna a trama principal do filme —, é ele que é como que a síntese do filme: completamente alheio. Enrico é o estereótipo do homem fechado, que privilegia o trabalho e não tem muita simpatia. É isso que o sustenta minimamente: um estereótipo clássico e de fácil reconhecimento. A trama avança e nada parece acontecer. A possibilidade do “fim do mundo” é tão imprevisível que o filme não sabe como seguir, que história contar, o que dizer. Não sabe se conta a história de Giulia, que chega depois na casa e tem uma questão com a fé, com visitas à uma freira, que, aparentemente, faz parte de sua vida; ou a repercussão que o amor que Elsa nutriu — e talvez ainda nutra — por Giulia tem em seu casamento com Pietro; ou a descoberta de maconha no quarto de Anna; ou os últimos desejos de cada um do grupo — todas as histórias igualmente desinteressantes. O filme é perdido em si mesmo. E é, então, que o romance entre Enrico e Paola ganha a tela. O filme ignora a proposta inicial e foca, ora no casal, ora em tramas paralelas. E, em se tratando do casal, ambos precisam lidar com a presença um do outro. O fato é que Paola agora está com Viktor, interpretado por Richard Sammel, e a história que se desenvolve a partir daí é insossa, extremamente batida e desimportante. É óbvio que eles ficarão juntos, como são óbvios todos os desdobramentos da trama.
Para além de todas as questões narrativas, A Ordem do Tempo é inanimado. A fotografia, o som, a arte — o olhar da direção para a história é desinteressante. Tudo tem um tom morto. Tudo cansa. Tudo é vazio. O filme faz o mínimo e se contenta. Se contenta em apenas mostrar o que uma ou outra personagem fala, em mostrar seu rosto quando é ela quem diz algo; em apenas mostrar uma luz enorme no meio da noite, a luz do asteroide no momento em que passa pela Terra, tão perto — mas também é morto. O máximo que acontece é o evento contado, no texto, por personagens que viram o clarão. Ou seja, o ponto que o filme inteiro especulava poderia não ter existido e nada iria mudar. Não há nenhuma exploração estética do que se discute no texto. Não se explora a luz — a construção e percepção do tempo pela luz —, a forma do desconhecido, o desconhecido, a deformação do tempo, o medo, a angústia, a tensão de algo tão rápido que pode extinguir a humanidade. Quando Paola fala da apatia de Enrico — num momento que, inclusive, é muito mal construído —, é como se ela falasse do filme, como se ela estivesse a ver essa tamanha falta do humano que chamo de filme. Existe essa falta. Falta de vida. Pergunto-me se um choque ou um berro ou um chacoalho em todas as personagens as chamaria para uma resposta humana, se algo como “olhe, você é gente, aja como uma pessoa viva: sinta!” resolveria algo. Mas tudo está perdido porque é um filme que se contenta. É um filme vazio. A Ordem do Tempo procura fazer conexões lógicas e explicar o que acontece, em dizer, no texto — que também é raso e mal construído —, o que se sente, em dizer o que se deveria construir enquanto forma.
Mesmo um momento, em tese, catártico — quando todos, após pensar o que fariam nesse último dia de vida, são levados por Jasmine à sala e dançam ao som de Leonard Cohen —, não é filmado como tal ou sequer tem o peso necessário. Não são pessoas que podem estar vivendo seu último dia na Terra que dançam e brincam: são pessoas que dançam e brincam. A ausência desse impacto é a síntese do que escrevo aqui. E é relevante pontuar que não se trata de todos: Isabel não dança ou canta ou brinca: ela serve — e está ao fundo, aparece em pedaços, ignorada. Esse cenário tem um potencial para uma abordagem interessante, uma abordagem a partir da classe, mas não é o que acontece. Essa trama apenas existe de lado e esse momento “catártico” evidencia o quão a personagem não é vista pelo filme como um todo. O filme age com a mesma apatia burguesa que a das suas personagens.
Mas A Ordem do Tempo tem alguns momentos engraçados — involuntários, diga-se de passagem, ou apenas tão mal construídos que parecem involuntários —, como quando Jacob, extremamente crente na bolsa de valores como seu guia do mundo, diz que está tudo bem porque a bolsa continua bem ou, em outro momento, quando ele diz que “se você quer realmente entender como as coisas funcionam, o que está acontecendo, é só olhar para a bolsa de valores”. Soa como uma crítica, mas morre pela ineficácia formal da obra, o que o torna apenas cômico, um respiro satírico durante o longo tempo do filme. Além disso, o momento em que Elsa diz que não morreria por seu marido enquanto fala de seu amor por Giulia é bem humorado pelo fato de o filme não saber o que fazer com isso. Após essa “forte declaração” da aniversariante, um climão se estabelece e se encerra por ali, provocando, só depois, uma discussão entre o casal. O episódio, já citado, em que Paola fala da apatia de Enrico, é cômico também por essa inabilidade da direção em construir algo interessante. E percebo que até esses pontos, talvez interessantes ou cômicos, ou pelo menos minimamente bons, do filme, também são desinteressantes. E esta crítica passa a ser tão desinteressante quanto. Só não mais — e mais mirabolante — que a reviravolta final, que traz o clichê de um filho desconhecido de um pai de família para a cena, que encerra o filme — ele parecendo perdido no meio de uma multidão também perdida. Mas será que essa multidão pelo menos sente?
A Ordem do Tempo é incapaz de sentir. O longa é um mosaico de personagens desinteressantes e chatos. Ele conduz as tramas de uma forma cansativa e não utiliza dos elementos cinematográficos em sua construção formal. É vazio e sequer chega ao básico. É um filme que não sente o baque.