Crítica escrita por Matheus Candeia Bonomo.

Sinopse: Em Assassino por Acaso, Gary Johnson (Glen Powell) trabalha para a polícia e finge ser um assassino de aluguel para prender aqueles que o contratam, até que ele quebra o protocolo para tentar salvar uma mulher desesperada.

Gary Johnson (Glen Powell) é um contente professor universitário, de vida simples e relativamente solitária, que vive sozinho no subúrbio com seus dois gatos, gosta de observar pássaros e dirige um Honda Civic. No entanto, entre uma aula e outra, ele auxilia a polícia a prender pessoas ao fingir ser um assassino de aluguel, prendendo-os no ato por terem “contratá-lo”. A estranha situação se torna ainda mais absurda quando Gary passa a se relacionar com Madison (Adria Arjona), uma mulher que ele convence a não contratá-lo para matar o marido e que acredita que Gary seja, de fato, um assassino de aluguel. Esse filme é uma história real. Bem, parcialmente real. Pelo menos é o que o diretor Richard Linklater afirma nos créditos iniciais de sua nova comédia, Assassino por Acaso.

A escolha de adaptar a história real de Gary Johnson e explicitamente exagerá-la é um dos pontos mais fortes do ótimo roteiro escrito por Linklater, Skip Hollandsworth e pelo ator Glen Powell. É no caos e nos eventos pouco críveis, como um professor tranquilo se mostrando um ator digno de Oscar ao fingir ser um assassino, que o humor do longa melhor funciona. E, para além das risadas causadas pela reação dos personagens que reconhecem a insanidade da coisa toda, com o espectador ciente da veracidade parcial da história, é impossível não se engajar com a trama enquanto se pergunta “o que aqui é real?”. 

E outra boa decisão do roteiro quanto ao absurdo de sua narrativa é o tempo que ele toma para situar o espectador nela. Ao invés de um primeiro ato acelerado, onde rapidamente Gary conheceria Madison e as coisas se complicariam, nós passamos um tempo com Gary, tanto ouvindo sua narração quanto acompanhando sua vivência. A preocupação inicial do filme é a de apresentá-lo como professor universitário e de como o seu trabalho de falso assassino de aluguel não só funciona, mas como se inicia. O filme entende que a situação já é insana e engraçada o suficiente, especialmente com o quão bom o protagonista é em interpretar as diferentes personas que assume, e aproveita o máximo disso antes de complicar as coisas com o romance central à trama.

Falando sobre os “assassinos” que Gary finge ser, a ideia de identidade é, para Linklater e os outros roteiristas, um dos temas centrais de Assassino por Acaso. Essa questão talvez seja a mais importante para a obra e ela encontra terreno fértil nas aulas de filosofia e psicologia lecionadas pelo protagonista. Esses momentos, naturalmente didáticos, além de outros, são usados com uma eficiência impressionante, apesar de, muitas vezes, demasiadamente explícita para expor a noção do Eu como um papel a ser interpretado. Durante o decorrer do filme, Gary cria um matador de aluguel específico para cada investigado, assumindo diferentes “eus” com uma veracidade por vezes assustadora. Mas, quando ele se apaixona por Madison e passa a viver cada vez mais como Ron, um assassino confiante e charmoso, que até seus colegas na polícia preferem ao verdadeiro Gary, sua personalidade vai lentamente se alterando, surgindo um pouco mais de Ron no Gary e remetendo a uma conversa que ele tem com sua ex-esposa sobre fingir até ser. Esse ponto no qual a identidade é mutável e marcada pela ação, pelo ato de ativamente ser até “naturalmente” ser, é um pilar no arco que Gary sofre durante o filme, no qual, ao fim, ele se torna a pessoa que percebe realmente querer ser.

E aqui os conceitos de desejo e fantasia são importantes, pois ambos são definidores da relação de Ron/Gary e Madison. Ron não é apenas o que Gary imagina que Madison deseje, mas também o que ele próprio gostaria de ser (com exceção da parte de matar pessoas), um complemento para aquilo que acredita ser desinteressante em si próprio. Usando uma oposição enunciada pelo próprio filme, através de Ron, Gary pode viver a vida definida pela Id enquanto permanece vivendo sua vida tão marcada pelo Superego. E, entre Id e Superego, Gary age como o Ego tentando equilibrar uma vida dupla que cada vez mais se torna turva.

Reforçando a ideia da identidade como performance, a atuação, junto do roteiro, carrega o filme. Começando por Glen Powell, que tem feito um tremendo sucesso nesses últimos anos com Top Gun: Maverick e Todos Menos Você, se alguém tinha alguma dúvida que esse homem é o carisma encarnado, Assassino por Acaso encerra a discussão. Ele simplesmente domina a tela em todas as suas cenas, mesmo quando interpreta o tímido Gary. Agora, um lado inédito de Powell que aparece aqui é o quanto ele é um camaleão, visto principalmente nas muitas fantasias que usa no seu trabalho de falso assassino. Muitas vezes ele se transforma drasticamente, com diferentes penteados, maquiagens, posturas corporais, sotaques e comportamentos, mostrando o incrível alcance do ator em seu ofício.

E, junto da excelente Adria Arjona (basta vê-la em Andor ou Irma Vep para atestar seu talento), ambos criam um casal verdadeiramente elétrico em tela, com uma química inegável desde o primeiro encontro dos dois. Com o romance não sendo um gênero estranho a Linklater, a partir do momento em que os dois se encontram, você não os quer ver separados, não importa o que aconteça. O desejo entre os personagens é evidente na tela durante todo o tempo em que eles a dividem e a última coisa que você quer é deixar de vê-los flertar. E a atriz consegue expressar muito bem a complexidade da personagem, mantendo-nos ao lado dela mesmo quando fica claro que ela talvez não seja confiável.

Mesmo com esse bom roteiro e essas memoráveis atuações principais, é necessário comentar sobre alguns aspectos que deixam a desejar. Visualmente, Assassino por Acaso é bastante sem graça, apresentando uma estética padrão de um cinema mais comercial, hollywoodiano, que cumpre o papel de representar a história, mas não a enriquece. Outro problema está presente nos personagens secundários. Enquanto o casal principal é muito bem desenvolvido e interessante, todos os outros personagens, mesmo arrancando boas risadas, não possuem nenhum desenvolvimento. Quando os créditos sobem, você não sabe nada sobre eles, aparentando serem quase que completamente vazios. O roteiro, mesmo com suas qualidades, simplesmente os usa para informar algo que avança a trama ou fazer uma piada, só. Ainda sobre problemas com o roteiro, vale mencionar que, em alguns momentos, o filme insiste em mostrar o dia a dia de Gary ajudando a polícia em momentos onde o que acontecia na relação dele com Madison era bem mais interessante, atrapalhando um pouco o ritmo da coisa toda. São poucas as vezes, mas acontecia.

Enfim, Assassino por Acaso se torna mais uma evidência, na versátil filmografia de Linklater, da sua incrível capacidade de tirar o melhor de seus roteiros e de seu elenco. A divertida comédia que questiona o absurdo como fronteira entre a ficção e o real e que aborda questões sobre identidade, brilha com a construção de um romance engajante, quente e inusitado, em meio a muitas risadas. Se você não era fã de Glen Powell ou não conhecia Adria Arjona, prepare-se para ser hipnotizado por ambos.

Ir para o conteúdo