Crítica escrita por Ernesto Loaiza.
Sinopse: Narvel Roth (Joel Edgerton) é o meticuloso horticultor dos Jardins Gracewood. Ele é tão dedicado em cuidar dos terrenos desta bela e histórica propriedade quanto em agradar sua empregadora, a rica viúva Sra. Haverhill (Sigourney Weaver). No entanto, o caos invade a existência espartana de Narvel quando a Sra. Haverhill exige que ele aceite sua problemática e conturbada sobrinha-neta Maya (Quintessa Swindell) como nova aprendiz, desvendando segredos sombrios de um passado violento enterrado que ameaçam a todos eles.
Atenção: A crítica a seguir contém pequenos spoilers sobre uma revelação que ocorre logo na primeira parte do filme.
Ao longo de toda a nossa história, enquanto seres dotados de sensibilidade, o símbolo “flor” foi amplamente explorado de diversas maneiras artísticas. Das raízes fincadas na terra às pétalas delicadas, é possível se dedicar, horas a fio, a poetizar sobre cada pequeno detalhe dessas pequenas musas botânicas. Destaco, contudo, um poeta que, com muita delicadeza para encarar a vida áspera, escreveu um dos poemas mais bonitos sobre a flor: Carlos Drummond de Andrade, e seu texto A Rosa do Povo. Autor da segunda fase do modernismo brasileiro, Drummond irrompe com padrões clássicos em forma e temática, aliás, com uma forte carga existencialista. Em A Rosa do Povo, uma flor rompe o asfalto, germina para trazer esperança em um mundo de caos: “É feia, mas é realmente uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. De maneira similar a esse autor, e ao movimento literário ao qual pertence, o diretor Paul Schrader, um dos expoentes da Nova Hollywood, movimento modernista do cinema estadunidense, trabalha esse símbolo de flor, a germinar onde é mais improvável, quando toda a humanidade parece perdida, em Jardim dos Desejos (2022). A partir de uma dupla de personagens, formada por um jardineiro, que esconde um passado hediondo, e uma aprendiz, vivendo tempos sombrios, Schrader nos apresenta o desabrochar de uma flor nessa relação, que, a depender do espectador, pode até ser feia, mas os transforma.
Desde o princípio, nota-se que o jardineiro Narvel é soturno: semblante inexpressivo, vestimentas escuras, voz lenta e pesarosa. Tudo isso contrasta com o ambiente no qual se encontra, os Jardins Gracewood, coloridos, elegantes, cheios de vida. Enquanto os outros jardineiros, mais jovens, sorriem e conversam em horário de descanso, Narvel não sorri praticamente em momento algum. Não significa que não goste de seu trabalho, sua conexão com a jardinagem é vital a ele, tanto no aspecto metódico, de devorar estantes de livros sobre botânica, quanto espiritual, como fica evidente quando cheira, profundamente, a terra, ou quando suspira pela sociedade ter se afastado da conexão com a terra. Além disso, a jardinagem é um processo de ordem, você age de forma que há um resultado esperado posteriormente, como ele diz, na verdade, como ele precisa dessa ordem para não recair em sua vida passada sombria, apresentada, aos poucos, em flashes: uma perseguição de moto, um tiro, um assassinato, até chegar no momento em que revelam-se, quando Narvel despe-se, tatuagens de white pride e símbolos nazistas. Aviso ao leitor que isso é apresentado logo no começo do filme, só que o trabalho de Schrader é, justamente, desenvolver, ao longo de todo o filme, a complexidade em um homem que tenta largar aquele que outrora foi.
Não obstante, as relações que ele tem, tanto com Norma, a dona e empregadora dos Jardins Gracewood, quanto com Maya, sobrinha-neta de Norma, que se torna aprendiz de Narvel a pedido dela, não deixam de ser desconfortáveis. Por um lado, Norma, mulher com idade de ser a mãe dele, tem uma relação desapegada, majoritariamente profissional, e o sexo é apenas um capricho das noites solitárias da senhora. Por outro lado, Maya tem idade para ser a filha dele, e acabam criando um interesse romântico no decorrer das aulas de jardinagem, mas, principalmente, a partir do momento em que eles passam a conhecer melhor os traumas um do outro, sensibilidade que falta à Norma. Maya é assombrada por um jovem traficante, um ex-namorado abusivo, além de continuar fazendo uso de drogas, assuntos que Narval prontamente dispõe para ajudar a resolver, primeiro por uma proteção que até pode ser considerada fraternal, mas depois pelo crescimento gradual de um romance. Ou seja, Narval, focando em seus jardins, estudando e escrevendo em seu diário sobre, para manter sua nova versão de si e escapar de seu passado, tem a vida desestabilizada pela chegada de Maya, que o leva a uma jornada de retomada ao criminoso que era, ao enfrentar os traficantes que ameaçam Maya, e de tentativa de aceitação afetiva por parte de Maya, que, aliás, é negra.
Dessa maneira, o filme trabalha com muitas dissonâncias sociais e morais, o que é realçado de maneira criativa pelo estilo do filme, que remete ao slow cinema, tão apreciado por Scharder, mas permitindo-se apertar o gatilho quando necessário, até, em determinado momento, transcendendo a barreira do realismo, como é de costume considerando-se o diretor, especificamente em uma cena que até remete às experimentações artificiais em Fé Corrompida (2017). Além disso, vale destacar a trilha musical da obra, que se adequa ao ritmo lento da narrativa com músicas atmosféricas, mas com dissonâncias harmônicas que perpetuam o estranhamento das situações. Ainda assim, em meio a tanto desarranjo, tanto sofrimento, não seria, precisamente, a flor capaz de romper essa dureza do asfalto? Como disse Drummond, “É feia, mas é realmente uma flor”, e, como tal, Schrader admira o milagre das relações humanas e suas transformações, por mais “feias” que sejam.
Jardim dos Desejos se atém a essa perspectiva otimista, e as ótimas interpretações de Joel Edgerton e Quintessa Swindell fazem com que essa história incômoda não seja apelativa, pelo contrário, é trabalhada com delicadeza e contemplando as complexidades humanas, especialmente de seus traumas. Até a música dos créditos reforça o caráter romântico da visão de Schrader, ao mesmo tempo irônica pela estranheza da história apresentada, mas honesta pela afirmativa da transcendentalidade de um romance, de um processo de cura, para ambas as partes. À primeira vista, tanto essa concepção idealista quanto a própria estrutura do filme podem parecer simplistas, mas o filme trabalha isso de maneira bem sincera e empática. Dadas as devidas proporções, claro, não há indivíduo que não tenha amargores do passado, épocas que gostaria de enterrar para sempre na memória, e está tudo bem com isso. Enterre-as como se fossem sementes, regue-as, cuide-as, faça com que floresçam as flores bonitas, as feias, mas que sejam novas — que tragam a transformação.