Como já fizemos com a Trilogia da Justiça de Maria Augusta Ramos, o objetivo das “sessões” é instigar ao leitor para ir além do simples ato de assistir uma série, filme ou documentário – mas a comparar obras presente na mesma plataforma de streaming. Esta é uma possibilidade nova que se abre devido aos repertórios cada vez maiores destas plataformas.

Assim, poderemos discutir diferentes abordagens entre temas similares, com intuito de analisar como se dá a variação de perspectiva entre múltiplos realizadores. Dessa maneira, poderemos nos aprofundar nas possibilidades narrativas e estéticas do meio cinematográfico para contar histórias.  Dentro desta proposta, hoje apresento duas séries da Netflix sobre uma mesma pessoa: Wallace Souza. Ex-apresentador de TV do “Canal Livre”, eleito como deputado estadual mais votado do Amazonas: a série ficcional Pacto de Sangue e a série documental Bandidos na TV.

Se o nome de Wallace lhe pareceu estranho, talvez suas referências sirvam para iluminar sua figura. Você pode conhecer seu programa de um famoso meme de Internet (na época apresentado por seu irmão) ou de um evento não tão lúdico: Wallace foi acusado de mandar matar traficantes para “aumentar a audiência” de seu programa.

É óbvio que tal história sensacionalista se tornaria um prato cheio para uma ficção. E esse é o caso de Pacto de Sangue, série produzida para o Canal Space que, depois de não ser renovada, acabou parando no acervo da Netflix. Pacto de Sangue é produzida e protagonizada por Guilherme Fontes, figura que também pode ser conhecida por figurar em múltiplos memes e polêmicas envolvendo seu nome: Fontes esteve a frente de Chatô – O Rei do Brasil, filme que ficou 20 anos em produção, mediante à acusações de mau uso das verbas públicas.

Pacto de Sangue

Sendo um alvo recorrente de matérias em telejornais, por conta de seu envolvimento com Chatô, é particularmente interessante que Fontes tenha escolhido viver um personagem baseado em Wallace, cuja vida foi destruída por alegações de crimes. Ou melhor, o ator nega a inspiração que seu Silas Campello (imagem abaixo) seja baseado em Wallace – mas são coincidências demais para deixarmos passar. Afinal, trata-se de um apresentador de um pequeno canal de TV local, nortista (Campelo é paraense), que é elevado ao sucesso após as famosas reportagens “espreme sai sangue”, tenta a vida política e que apresenta envolvimentos com traficantes e justiceiros. As “coincidências” vão mais além como ficará bem claro no decorrer desta crítica.

No entanto, há de se concordar com Fontes em pelo menos uma coisa: Pacto de Sangue não tenta ser nem um pouco bibliográfica – criando uma trama policialesca que volta e meia cria cenas de ação que se parecem deslocadas da narrativa. Aliás, este já se apresenta como um dos problemas mais evidentes da série: a história de Silas Campello, apesar de ser a trama central de Pacto de Sangue, divide seu tempo de tela com outro protagonista: o detetive Roberto Moreira, vivido por Ravel Cabral.

A série não tenta ser nem um pouco sutil na sua intenção de demonstrar a decadência social de Roberto, que passa as noites dividindo entre competir “quem bebe mais” no bar que funciona embaixo de sua casa e vomitando sozinho em sua casa. Falando nela, a residência, sem cama, janelas vedadas com plástico e latas de embutido e cerveja espalhadas, são particularmente caricatas no objetivo de ressaltar ao espectador as condições do personagem.

Roberto é enviado ao Pará como sua “última chance” de se redimir com a corporação. Lá, ele se junta a Soares, vivido por André Ramiro, em uma cópia completa de seu icônico Ramiro de Tropa de Elite 1 e 2. Aliás, a série passa a impressão que a dupla – uma tentativa de “buddy cops” – foi colocada na narrativa como uma forma de emular o sucesso dos filmes de ação em que Ramiro participou, já que são eles que motivam as cenas mais “movimentadas”. No entanto, também são eles que evidenciam que a narrativa de Pacto de Sangue anda pra todo lado – já que seus destinos nunca se esbarram com o de Silas Campelo (algo que deveria estar planejado para a não existente segunda temporada).

Falando em narrativas soltas, mais problemática ainda é a trama de Gringa e Truco, vividas por Mel Lisboa (que volta às telas depois de um longo hiato) e Jonathan Haggensen. Um casal de relação conturbada envolvendo uma traficante de mulheres e um traficante de drogas. A relação fica bastante mal encaixada na trama, nos colocando sobre um constante questionamento se em algum momento seus arcos irão encontrar com os dos personagens principais – algo que acontece de forma completamente insatisfatória.

Aliás, a personagem de Mel Lisboa ainda traz mais uma crítica à ser feita a série: a estetização da violência e do tráfico. Se aprofundando ainda mais, todas as mulheres traficadas pela Gringa estão quase sempre nuas, tem um corpo padrão e estão sempre limpas e higienizadas – mais como se fosse modelos de um ensaios, do que propriamente vítimas de uma prática absurda. Além disso, os cenários luxuosos no meio da floresta (imagem abaixo) remetem a uma encenação de Cleópatra e não ajudam a criar um retrato crível daquela personagem e nem de suas práticas.

Falando em práticas, é necessário dedicar um parágrafo a parte para falar do retrato que beira ao misógino de Gringa. Ao retratá-la como uma “bruxa do mal” (este é literalmente o nome de um dos episódios), Pacto de Sangue tenta construir uma certa persona sexual na mesma (seja beijando suas vítimas ou sendo violeta no sexo) – a série parece querer vincular a sexualidade (e o gênero) da personagem à sua vilania. Mais vemos sobre sua sexualidade e seus “rituais” (ela é inclusive chamada de “devota de sangue”) do que propriamente sobre suas atitudes quanto traficante. Isto não só superficializa o crime que está sendo cometido, como ainda joga uma capa de “sexualização” e de “ritualização” nessas práticas criminosas quando cometidos por uma mulher.

O mesmo pode se falar de mais um arco desnecessário da série: a da personagem Mari Campello, filha de Silas, vivida por Mika Guluzian. A jovem, retratada em uma clínica de reabilitação por uso de entorpecentes, parece existir apenas para termos alguma espécie de “elo empático” na série. Porém, mesmo isto é falho, uma vez que as únicas características trabalhadas na personagem são o seu desgosto pelo pai e a sua relação com o vício. Aliás, todo o ambiente da clínica é responsável por uma série de ações sem pé nem cabeça, como as demonstrações de raiva de Silas ou as ameaças de intimidação ao mesmo.

Talvez seja no personagem do próprio Silas que essa falta de profundidade fique mais evidente. O repórter é retratado como alguém ambicioso, corrupto e sem nenhum tipo de qualidade redentora: sendo péssimo pai, marido e colega profissional. Assim, é virtualmente impossível criarmos algum tipo de empatia pelo mesmo – não nos levando a se preocupar com sua trajetória na série. Ainda sim, chega a ser chamativo que a série se preocupe em dar mais tela ao caso extraconjugal que ele tem com sua colega Renata (Cristina Lago) do que com o avanço profissional de sua carreira. São pouquíssimas reportagens mostradas por Silas e, menos ainda referências ao impacto que isto tem na audiência.

Entre romantizações de práticas criminais e de ações policiais ilegais (como aquelas cometidas sem o conhecimento do chefes encarregados) a série faz muito pouco por seus personagens, tornando-os todos grandes caricaturas. Parece que se perde uma grande oportunidade de se aprofundar em temas tão sensíveis como tráfico de mulheres, relações entre o poder e o crime, corrupção, etc, para focar em uma narrativa rasa e que não consegue justificar nenhum de seus atos. Talvez se esperasse uma segunda temporada para dar um pouco mais de camada a alguns de seus personagens, mas nem a isso podemos considerar, uma vez que muitos deles simplesmente são mortos e descartados ainda na primeira temporada, sem nunca ter tido a chance de justificar a existência.

A ação “heróica” de Silas Campelo no último episódio é o ápice desta percepção que a série tem dificuldades em decidir o que fazer com seus personagens – não parecendo estar certa de que história quer contar. São sobre os detetives? Sobre os traficantes? Sobre a ascensão profissional de Silas? Sobre suas relações familiares? Não sabemos. Como veremos a seguir, ao contar um pouco sobre a história do “verdadeiro” Silas, Wallace Souza, ficará claro o potencial desperdiçado pela série ficcional e que justificam a falta de renovação para uma segunda temporada.

Bandidos na TV

Se passamos parágrafos falando da superficialização dos personagens em Pacto de Sangue, Bandidos na TV se propõe fazer justamente ao contrário. Mostrar um Wallace Souza extremamente complexo. Herói da justiça? Apresentador sensacionalista? Político oportunista? Idealista ? Chefe de organização criminosa? Talvez Wallace seja tudo isso. Talvez não. E é justamente em te deixar tentando construir esta imagem mentalmente que a série guarda seu maior trunfo.

Antes de nos aprofundarmos nessa questão, é importante dar luz a estratégia de Bandidos na TV de se aproveitar do “lide” do caso: telejornalista é acusado de mandar cometer os crimes por ele mesmo apresentados, na busca por melhores audiências. O poder de atração da manchete é óbvio: quem não vai querer mais ler e ouvir sobre um caso que mais parece algo da ficção? E é justamente isso que a série busca pontuar: foi essa a chamada responsável por dar conhecimento ao caso (fazendo inclusive com que ele ganhasse repercussão internacional) – e também foi a responsável por superficializá-lo. Uma combinação perigosa que ajuda a explicar as consequências trágicas de todo o caso.

É importante esclarecer que a série desde seus primeiros episódios já deixa claro que a narrativa de que se tratavam de crimes para “aumentar a audiência” é claramente fantasiosa. E, caso isto ocorresse de fato, era mais uma consequência do que o objetivo por trás das aspirações de Wallace Souza. Afinal, são mostradas que as maiores acusações colocadas sobre ele são de ser um dos grandes nomes pro trás do tráfico de drogas em Manaus – algo que implica ganhos muito maiores do que o programa Canal Livre poderia trazê-lo. Aliás, segundo essa perspectiva, os maiores ganhos que o programam poderiam trazê-lo eram imateriais: era o prestígio com o público (o que fez se tornar deputado estadual mais votado do Amazonas) e a possibilidade se colocar “acima de qualquer suspeita”.

Quanto à essas suspeitas, é impressionante o trabalho documental da série em se aprofundar em cada um dos desdobramentos e caminhos de investigação do caso (fazendo com que por vezes alguns episódios fossem muito inflados, reunindo uma quantidade de material que pouco faz em avançar a narrativa). No entanto, ela nunca o faz sem dar a possibilidade ao contraditório. Se, por vezes, as acusações parecem indefensáveis (como os papéis com a letra de Wallace com relações de armas, achados em sua própria casa), o direito de resposta faz com que seu jogue uma cortina de dúvida sobre ela (como a indicação de que aquilo se tratava de uma denúncia anônima que recebera – e que tais armas não foram encontradas).

São a partir dessas idas e voltas (entre acusação e defesa) que a série constrói sua narrativa,  se estruturando em focar sobre cada um dos personagens ou eventos relacionados, em cada um dos seus episódios. Enquanto tal escolha causa certa confusão cronológica (uma vez que não seguimos a ordem dos acontecimentos) – ela é eficaz em criar o suspense necessário para esse tipo de material. Assim, em cada episódios surgem informações novas que nos obrigam a repensar sobre determinadas considerações, e fazem com que qualquer conclusão se mostre precipitada. Como o caso da foto abaixo, que comprova uma relação até então desmentida pelo apresentador.

Porém, não são só nossas conclusões que parecem potencialmente precipitadas. O mesmo parece valer para o poder público. Em uma época que vemos promotores acusando políticos a partir de “convicções sem provas”, a falta de materialidade para acusar Wallace parece gritante. Novamente não estamos fazendo nenhum tipo de juízo de valor sobre a inocência ou não do apresentador/político, mas demonstrando como a falta de uma acusação certeira fez com que dezenas de acusações mais frágeis recaíssem sobre ele: tornando aos olhos da justiça como uma espécie de rei do crime.

Aliás, tal justiça cega pela perspectiva de fazer um grande prisão, também ajuda a nublar nossas percepções sobre o caso, ao cometer uma série de excessos. Seja uma invasão policial que inicia com um desnecessário assassinato de um cachorro (algo que na ficção é o tipo da cena usada para mostrar vilania), as torturas psicológicas impostas à presos ou a destruição da vida pública de Wallace, mesmo antes de se ter qualquer confirmação. As consequências destes atos ficam evidentes na própria saúde do político que vai se deteriorando a cada episódio. Afinal, independente de seus atos – não cabe a justiça imputar pena de tortura ou morte à nenhum de seus presos ou investigados. Agir de maneira midiática (e aqui os paralelos com a Lava Jato são evidentes) significa expor pessoas à humilhação pública, perda de patrimônio político e econômico, criando escaras e cicatrizes incontornáveis.

Falando em consequências, talvez seja no último episódio que a série atinja seu ápice – ao demonstrar como as tragédias criminosas que se seguiram em Manaus vão muito além da narrativa de que apenas um homem pudesse levar toda a culpa. Parece bastante possível que Wallace tivesse grande responsabilidade por alguns dos crimes à ele imputados. Porém, o cenário é muito mais complexo do que as declarações de alguns policiais parecem levar a crer. Também fica claro o impacto que a política tem nessas narrativas e operações, buscando eleger alguns grandes cabeças do que abordando os reais problemas: a relação íntima do poder e das polícias com o tráfico, a porosidade das fronteiras para o tráfico de armas e drogas, a falta de expectativa de uma juventude periférica que é assimilada ao crime, etc.

Com aparição indiretas de vários nomes envolvidos na política até hoje (alguns que inclusive ganharam certa visibilidade com a CPI da Covid) – Bandidos na TV é muito eficaz em mostrar as reais ramificações dos problemas com violência de Manaus, não colocando Wallace Souza como uma figura exógena – mas como parte intrínseca daquela conjuntura. Para o espectador que não vive aquela realidade (pouquíssimo mostrada nos principais noticiários do país) conseguimos ter uma ideia mais aprofundada de suas complexidades e peculiaridades.

Dessa forma, Bandidos na TV nos chama pelo sensacionalismo de sua sinopse (presente em tantas outras séries True Crime da Netflix) mas nos pedem para que olhemos mais além dela, nos oferecendo um cenário profundamente complexo. Em um período em que matérias absurdas e raciocínios rasos parecem ter bastante apoiadores – Bandidos na TV é extremamente competente ao mostrar que a simplicidade não cabe na verdade e na realidade. Entender o Brasil e seus problemas não é algo que resume à uma pessoa – é necessário ir muito mais além.

Considerações

Ambas as séries divergem bastante em qualidade. Mas isto é menos motivado pelo formato em que se encontram (ficção x documental) e mais pela profundidade que se dedicam aos seus personagens. Nesse sentido, assistir as duas obras se torna uma grande oportunidade para compreender a importância de dar complexidade aos personagens e as situações que eles se encontram.

Pessoas são figuras extremamente contraditórias, falhas e cinzas – não cabendo nem a ficção, nem ao documental, superficializá-las em caricaturas pouco convincentes. E o mesmo deve se falar dos problemas sociais como a questão do tráfico e da corrupção, ou de questões éticas, como o sensacionalismo jornalístico e os abusos policiais. São uma realidade complexa, em que o certo e o errado não podem ser usados como uma balança moral para julgar “mocinhos e bandidos”.

O mal e os mal-feitos não podem ser usados como desculpa para criar soluções simples  para problemas complexos. Nesse sentido, a história de Wallace Souza parece ter sido uma grande advertência para os problemas que iriamos enfrentar na década de 2010. A infantilização da política e da justiça ajuda a nos explicar o Brasil de 2021. Compreender os excessos e os erros de abordagem que houveram em seu caso talvez nos ajude a pensar em formas de reconstruí-lo em 2022.

Pessoas são mais Wallace Souza do que Silas Campelo, por mais que a realidade hoje mais pareça saída da ficção.

Ir para o conteúdo