Crítica escrita por João Pedro Santana para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

Sinopse: Do outro lado do enorme pavilhão, que serve de abrigo temporário à pantagruelica massa de recém chegados de toda escassez da civilização ingênua, X observa o recrutamento da Prolife.

Há mais de um mês eu venho tentando escrever sobre este filme, sem muito sucesso. O desafio posto poderia se resumir em uma pergunta muito simples: como escrever sobre um filme que, imediatamente após a sessão, eu já não era mais capaz de sequer descrever o que tinha acabado de assistir? Decidi, então, desistir desse desafio de escrever sobre o filme, para agora me fazer um novo: escrever sobre o próprio exercício de escrita sobre o filme. Acredito que essa seja a melhor forma de me buscar alguma aproximação à Aquele que viu o abismo (2024), de Gregorio Gananian e Negro Leo, escolhido pelo Júri Jovem da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes para receber o Prêmio Carlos Reichenbach.

Antes do início da sessão do filme em Tiradentes, Negro Leo alerta ao público — “Vejam e ouçam!”. Não interprete o que se vê, é o que pede o diretor. O que temos nos minutos seguintes, definitivamente, é um show para ser visto e ouvido — o trabalho com imagens em movimento e som é levado ao pé da letra. De fundo, desenrola-se uma narrativa a respeito de um homem, “X”, o protagonista da história, interpretado pelo próprio Leo, que parece estar envolvido em algum tipo de experimento científico-político-social, numa China hipertecnológica e futurista. A história, entretanto, é confusa. Persiste-se no uso de enquadramentos instáveis, que poderiam ser traduzidos no próprio estado paranóico do protagonista no filme, e que não nos permite nos aproximar daquilo que se vê em tela. A trilha sonora é perturbadora, um trabalho de composição musical e paisagem sonora que toma conta do quadro e preenche todos os sentidos. Enquanto espectadores, não nos sobra nada além da condição de um permanente estado de alerta e autoconsciência sobre nossa própria condição.

Nessa condição de espectador (e crítico, em última instância), há um sabor que remete à necessidade de se preparar para a experiência fílmica proposta pelos diretores. Ao longo de toda a obra, o protagonista se manifesta através de narrações fora de tela, que remetem ao despertar de um transe — a aquisição de uma certa forma de consciência sobre a realidade. Em diferentes momentos, são narradas frases de efeito que poderiam muito bem se relacionar à própria trama ou com uma presumida realidade antecampo. Chega-se a denunciar, a título de exemplo, formas de um “identitarismo liberal”. Sem se preocupar com nenhum adensamento — da forma mais superficial possível —, a crítica política e a relação com a história do cinema são postas.

Em meio a avalanche de informações na obra de Gananian e Leo, é difícil perceber e processar qualquer coisa posta em tela. Poderíamos dizer que se trataria de um verdadeiro manifesto contra a hermenêutica. Contudo, é justamente no fluxo incessante do filme que tudo se perde. Diferentemente de um manifesto, que busca a defesa ou a exposição de uma ideia para um público, Aquele que viu o abismo não parece ter o menor interesse em se aproximar de seu público. A necessidade de se preparar para o que será assistido é uma máxima que jamais poderia ser alcançada aqui.

Na medida em que tenta ser tudo ao mesmo tempo, ao final, o que sobra de Aquele que viu o abismo é um imenso vazio, uma vaga lembrança de algo que nem ao menos poderíamos começar a descrever imediatamente após à sessão.

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