Crítica escrita por João Pedro Santana para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

Sinopse: Na terra da axé music, punks velhos resistem e vivem com autonomia.

Um mestre cervejeiro, uma dona de um restaurante vegano, um consultor de audiodescrição, um artesão e um motoboy compõem um grupo de punks velhos em Salvador, BA. Nos anos 1990, orbitavam um clube punk conhecido como Not Dead, título do filme de Isaac Donato, selecionado para a 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Na obra, o autor explora a relação construída entre os integrantes do coletivo, que também atravessa sua própria biografia. Em um movimento de busca por uma constante atualização do espírito punk soteropolitano, a obra se propõe a discorrer sobre o processo de sujeição desses indivíduos, marcados por relações de classe, raça, política e territorialidade.

Vãos em uma parede emolduram uma dupla de amigos. Como pontapé para a discussão, um deles pergunta — Vamos falar sobre René Descartes? E, em seguida, passam a discorrer sobre o que poderia ser uma identidade punk na Bahia. O uso do preto e de roupas de couro, comumente associados ao punk, são ressignificados por eles na medida em que se questionam, por exemplo, sobre vestir couro sob o sol de Salvador. Ou, ainda, sobre o que produz esteticamente o contraste das roupas pretas com a pele branca de um inglês, em contraponto à pretitude de suas próprias peles.

Formado majoritariamente por um elenco de homens negros e trabalhadores, Not Dead é uma obra que explora a construção das identidades que atravessam seus personagens. O filme não está atrás de uma visão etnográfica tradicional, produzindo uma racionalização sobre determinadas práticas culturais a partir da aspereza do encontro entre o eu e o outro. Aqui, esse outro é convidado a participar da construção do filme junto ao cineasta. Assim, a opacidade é rompida, expondo o entrelaçamento desses sujeitos na construção da narrativa em quadro.

A todo momento, estamos embebidos em uma atmosfera de fraternidade que registra o cotidiano de seus personagens. A câmera sempre aparece em um contexto de familiaridade, onde nós podemos assistir o desenrolar da história seja através de um buraco na parede, de uma janela ou do canto de um cômodo. Trata-se de uma câmera observacional que não se aprofunda no discurso: se alguma defesa ou ataque são feitos, eles logo se dissolvem. A narrativa acompanha o presente de seus personagens, que refletem, atualizam e revisam seus posicionamentos de outrora. Donato nunca contradiz, nem confronta diretamente seus personagens.

A todo momento, Not Dead convoca a metalinguagem, expondo a construção da obra, de tal maneira que cineasta e aqueles que filma estão postos numa triangulação que brinca cognitivamente com o público que assiste o desenrolar da trama. Há, por exemplo, um personagem que aparece em tela recorrentemente ditando a própria história. Seu papel dentro da narrativa só vai ser revelado ao final do filme. Enquanto isso, ele pode brincar com recursos como o de rebobinar, produzindo releituras de como devemos olhar a imagem.

Not Dead nos aproxima  do universo punk de Salvador nos dias de hoje. Ao fazê-lo, traz à tona questões muito presentes nos debates contemporâneos sobre as identidades culturais. Nele, Rai, Piolho, Moska, Neilton, Luciano Robô, Ed, Yzgoto, Tinho, Lu e Robson Véio são convocados para contar suas histórias de vida e como elas se entrelaçam umas às outras, resultando em um trabalho leve e descontraído.

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