Crítica escrita por Bruno Miguel Mello Vianna para a disciplina de História do TV e do Cinema da CAL, ministrada por Gledson Mercês.

Bruno Miguel é ator em formação na CAL, pós-graduado em Roteiro para Cinema, Tv, WEB e Multiplataformas na UVA e graduado em Produção Cultural pelo IFRJ

Os créditos iniciais do primeiro longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos mostram através de imagens aéreas diversos cartões postais do Rio de Janeiro. A cartela apresenta com status de estrela a cidade de São Sebastião na produção de Rio, 40 graus. Conforme a abertura avança ao som do lirismo da trilha sonora de Radamés Gnattalli e Zé Ketti, o cenário toma outro rumo, um até então ignorado pelo olhar das produções cinematográficas brasileiras. Somos levados ao Morro do Cabuçú, favela erguida às margens da Cidade Maravilhosa (alcunha que será implacavelmente questionada por quem realmente estiver disposto a enxergar os 100 minutos seguintes).

A fictícia comunidade do Morro do Cabuçú poderia perfeitamente representar o Morro da Providência, comunidade real erguida na Zona Central do Rio de Janeiro, próxima à Estação Central do Brasil. Lá, invadimos a realidade da favela como ela era em 1955, ano de produção do filme.

Há de se salientar o que torna Rio, 40 graus um marco do cinema. A empresa responsável pelas produções cinematográficas no início da década de 50, Vera Cruz, estava em declínio. Os altos custos das produções e a concorrência desleal no processo de distribuição de seus filmes nas salas de exibição do país aliados a uma má gestão de recursos interna fizeram com que os títulos produzidos amargassem péssimas bilheterias, o que impedia a empresa de se tornar autossustentável. Em 1954, a Vera Cruz declara falência. Seria errado dizer que ela não fez obras de sucesso, afinal, seu intuito sempre foi o de se aproximar do modelo hollywoodiano de fazer filmes. No entanto, em seu fôlego de curta duração, a companhia se manteve longe da possibilidade de fomento ao cinema de autor.

É nesse contexto que surge Nelson Pereira dos Santos, paulista, filiado ao Partido Comunista Brasileiro e entusiasta da estética do Neorrealismo italiano. Características como a filmagem em cenários reais, a utilização de atores não profissionais, a recusa aos efeitos especiais, a simplicidade dos diálogos, a valorização de gírias, a filmagem de cenas sem gravação, com a edição de som realizada na pós-produção e a aproximação da câmera para criar uma intimidade maior com o público foram absorvidas por Nelson, que expõe em Rio, 40 graus uma fatia da vida de pessoas às margens da sociedade, mas não só delas. A burguesia, retratada eventualmente de maneira caricata, também compõe esse recorte. Essa intenção de expor desigualdades e de espremer certas feridas faz com que o filme abrace inclusive um tom documental.

É crua a forma com que somos apresentados aos cinco meninos, supostos protagonistas, ainda crianças, que se preparam para encarar o trabalho de vender amendoins em um ensolarado dia de domingo. Eles planejam comprar uma bola de futebol e para isso precisam contribuir cada um com 50 cruzeiros. Os garotos se separam e partem para pontos turísticos badalados da cidade: Corcovado, Pão de Açúcar, Quinta da Boa Vista, Praia de Copacabana e o estádio do Maracanã.

É aqui, mais uma vez, que o cinema de autor de Nelson se afasta das cartilhas narrativas hollywoodianas. Não há um único protagonista aqui a cumprir a famosa jornada do herói, tão enaltecida por Joseph Campbell e esmiuçada por Christopher Vogler. Não há um antagonista concreto ou um grande conflito a ser resolvido. Personagens são apresentados e depois descartados sem motivo aparente. Presume-se que algumas situações irão se entrelaçar até o final do filme, mas não. Tudo serve à composição de um mosaico que nem sempre “se costura para dentro”.

Um exemplo disso é a trama de Rosa, que vai até a Quinta da Boa Vista à procura do jovem militar com quem está envolvida. Ela está grávida dele e quer que ele a tome como esposa. Ela pede que o rapaz a acompanhe até o prédio em que seu irmão trabalha em Copacabana e peça a ele permissão para se casarem. Esses personagens não afetam o destino dos cinco jovens apresentados anteriormente, apenas orbitam seus espaços. Importante mencionar que Rosa e o irmão são nordestinos. É Nelson trazendo os holofotes a outra realidade que mais a frente será explorada por diretores do movimento do Cinema Novo: o de trabalhadores que migram do norte e nordeste para o eixo Rio-São Paulo em busca de oportunidades.

Ao longo do dia os meninos são tragados pela violência e exclusão com que são tratados meninos negros favelados até hoje. Sim, infelizmente não há como utilizar o pretérito imperfeito aqui. Mesmo 68 anos depois, a realidade vista em Rio, 40 graus não está nada distante da atual.

No decorrer do dia, um dos meninos é expulso do jardim zoológico ao passo que crianças uniformizadas adentram o local numa excursão escolar. Outro é perseguido por um aproveitador que só autoriza vendedores ambulantes nos arredores do Pão de Açúcar caso paguem uma taxa para trabalharem ali. O mais velho tem sua mercadoria perdida por conta do ato banal de um transeunte na Praia de Copacabana e aprende da pior maneira que mentir é o caminho mais direto para atingir a consciência da burguesia.

Aproveito para observar que a versão que assisti desse filme é a disponível no Globoplay, que não foi restaurada. Como o filme é basicamente composto de cenas externas, portanto fadadas a ruídos, fica evidente que houve uma sincronização sonora posterior às filmagens. Ainda assim, com a inserção de trilha sonora, fica difícil pegar os nomes de alguns personagens nessa versão a que tive acesso. Os nomes dos personagens tampouco aparecem nos créditos.

Paralelo aos infortúnios dos cinco meninos, acompanhamos uma família desesperada para ascender socialmente, disposta inclusive a empurrar a filha para os braços de um recém-chegado Ministro de Minas Gerais. O velho é um típico coronel que explora de maneiras escusas a sua mão-de-obra e justifica sua idoneidade através de brechas que encontra nas leis.

Há também o núcleo do Morro de Cabuçu, que entre apostas e rinhas de galo se prepara para a escolha de samba de enredo local daquele ano. É possível presumir que o momento em que o galo se desvencilha dos braços do pai de Alice inspirou os roteiristas Paulo Lins e Bráulio Mantovani na sequência da captura do galo em Cidade de Deus, 2002. A presença do “senhorio” que ameaça cortar a luz dos moradores caso esses não paguem uma taxa de manutenção dialoga com os milicianos que dominam diversas regiões da cidade atualmente.

É possível seguir a trajetória de Miro. O rapaz, ex-namorado de Alice e membro da comunidade do Cabuçú, parece atrair confusão por onde quer que transite. Ele acompanha a partida de seu time Pengo (uma alusão ao Flamengo) em uma grande sequência que acontece no estádio do Maracanã. Ele é expulso do local por conta de uma briga e consegue voltar ao estádio com a ajuda de um dos meninos que vende amendoim no lugar.

Desse contexto emerge outra trama aparentemente sem conexão com o dia daqueles meninos. Nela, o cartola do time repentinamente exige do técnico uma alteração de última hora: um dos reservas do time, Foguinho, deve ocupar o lugar de um dos craques, Daniel, naquela partida. A alteração move os ânimos das torcidas e resulta em um dos mais belos diálogos do filme. Ao ser pressionado pelo técnico durante o intervalo entre os tempos do jogo, Foguinho está à beira de um colapso nervoso. É quando surge um assessor do time a fim de acalmá-lo. O homem pergunta se ele se vê fazendo outra coisa além de jogar bola e Foguinho diz que não. Esse assessor injeta esperança no jogador e termina seu discurso declarando que “há de chegar o dia em que não seremos mercadoria”. O jogo segue e Foguinho alcança a glória. Durante a partida observamos conversas banais entre torcedores.

Mais tarde, em 1963, o diretor Joaquim Pedro de Andrade viria beber da fonte do futebol em Garrincha, alegria do povo, longa-metragem documentário representante do Cinema Novo:

Nas cenas finais do filme, acompanhamos as pessoas saindo do estádio até deixá-lo vazio. Acompanhamos a jornada das multidões, que enfrentam trens lotados até suas distantes casas nos subúrbios. Na sequência somos levados para um novo dia com os torcedores preenchendo o estádio, dirigindo-se às arquibancadas, com suas satisfações e angústias do jogo e as esperanças depositadas nos ídolos. Assim, o torcedor reabasteceria suas forças a cada domingo, para conseguir repetir na vida diária o ritual da ida ao trabalho para garantia da sobrevivência. O filme sugere que o futebol é, na verdade, uma fuga dos dramas cotidianos ou, ainda, uma manifestação da “desesperada alegria do povo brasileiro”, como afirmou Glauber Rocha. (Maria do Socorro Carvalho, 2006.)

É justamente no arco de um dia de domingo que se passa Rio, 40 graus. No fim do dia, a comunidade do Morro do Cabuçú se reúne para celebrar a escolha de samba e receber a visita da Escola de Samba da Portela. Nem todos os meninos voltam para casa. Um deles é perseguido por um grupo de pedintes que disputam território e acaba sendo atropelado ao tentar se agarrar a um bonde na Zona Sul. Seu grito é prontamente abafado por um corte brusco e proposital do grito das torcidas do jogo de futebol que acontece ao mesmo tempo. É a imposição do “circo” que distrai as pessoas da natureza cruel de suas realidades.

O filme encontrou sérias adversidades durante sua realização. Da falta de patrocinadores à censura, que desaprovou diversos pontos abordados por Nelson Pereira dos Santos. O chefe da Segurança Pública da época, o General Geraldo de Menezes Cortes, censurou a película alegando que essa estava repleta de elementos comunistas. Os diálogos repletos de gírias (associadas à malandragem) e a maneira como representaram um político na história compuseram o combo que desagradou ao General. Ele chegou ao cúmulo de acusar o filme de mentiroso, visto que a cidade do Rio de Janeiro não havia até então registrado a temperatura de 40 graus.

Após intensa movimentação artística, o veto que censurava o filme caiu e ele estreou no ano seguinte, em março de 1956. Mesmo com toda a atenção gerada pela mídia e com os aclamados elogios recebidos pelo então editor da Cahiers du Cinéma, o francês André Bazin, o filme não se fincou como sucesso de público. Nelson Pereira dos Santos, no entanto, foi alçado aos grandes nomes do cinema nacional e o tempo provou seu talento. A inquietação do diretor em se apropriar da estética europeia para desenvolver uma linguagem autêntica e nacional inspirou outros diretores como Glauber Rocha, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman a criar obras definitivas da cultura brasileira. Nelson compôs duas vezes o júri do Festival de Cinema de Veneza (1986 e 1993) e teve três de seus filmes selecionados à Palma de Ouro no Festival de Cannes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2007.

MASCARELLO, Fernando. História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006.

CARVALHO, Maria do Socorro. História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006.

MARTINS, Vinicius Alves Portela. Fundamentos da Atividade Cinematográfica e Audiovisual. Rio de Janeiro: Método, 2012.

GALERA, Graciele. “Nouvelle Vague: a revolução da estética na arte de fazer cinema”. Disponível em: http://culture-se.com/noticias/135/nouvelle-vague-a-revolucao-da- estetica-na-arte-de-fazer-cinema Acesso em 1 de maio de 2023.

KANECO,       Eduardo.        “Crítica        Rio,        40        graus”.        Disponível        em: https://leiturafilmica.com.br/rio-40-graus/ Acesso em 1 de maio de 2023.

HEOLI, Conrado. “Precursor do Cinema Novo brasileiro, é parte essencial da filmografia do Brasil”. Disponível em: https://www.cineplayers.com/criticas/rio-40- graus Acesso em 1 de maio de 2023.

“Nelson Pereira dos Santos’ Biography”. Disponível em: https://www.imdb.com/name/nm0673051/?ref_=nmbio_ov Acesso em 1 de maio de 2023.

FILMES CITADOS

RIO, 40 graus. Direção e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Brasil, 1955, p&b, 100 min.

GARRINCHA – Alegria do Povo. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Roteiro: Luiz Carlos Barreto, Mário Carneiro e David Neves. Brasil, 1963, p&b, 60 min.

CIDADE de Deus. Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lund. Roteiro: Paulo Lins e Bráulio Mantovani. Brasil, 2002, cor, 130 min.

Ir para o conteúdo