Eu trabalho, eis aqui a pluma,

o papel : a pista branca

onde o homem pode tourear o mistério.

 

Ao pensar em Vanguardas Artísticas, lembramos daqueles quadros abstratos que víamos na escola, no curso pré-vestibular, ou quando estudávamos algo sobre Modernismo. Certamente, foi um momento na história que impulsionou muito do que temos hoje como arte. O Grito, de Edvard Munch, A Persistência da Memória, de Salvador Dalí, ou até A Fonte, famosa privada exposta por Marcel Duchamp, foram formas dos novos talentos do século XX dizerem: nem tudo precisa imitar a realidade. Falando especificamente sobre o Surrealismo, em 1924, o artista Andre Breton anuncia no Manifesto:

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. (BRETON, 1928, p.12)

Através dessa estética, somos convidados a sair da mimese e atingir uma arte subjetiva, de sonhos e possibilidades. Os estudos de Freud sobre o inconsciente influenciaram diversas pessoas a testarem a produção artística de uma maneira abstrata. Os vanguardistas usaram todos os meios possíveis para divulgarem suas obras, e é claro que no cinema não seria diferente. Eles o viam como uma extensão da pintura, levando suas abstrações através de uma tela em movimento. Para os entusiastas, quem não se lembra da famosa cena do olho cortado em Un Chien Andaluz, de 1929 ou do misterioso Meshes of the Afternoon, feito em 1943. No geral, eram diretores que viam a projeção cinematográfica como um meio – quebrando o conceito de arte pela arte, e gostavam da capacidade que tinha de transmitir realidade, ao mesmo tempo que levava o espectador a um estado de transe tão profundo, que se assemelha a um sonho.

Contudo, Jean Cocteau não usou as telonas apenas como um meio para sua produção. De origem francesa e parisiense, nascido em 1889, foi um mestre no poema, pintura, dramaturgia, literatura e é claro, no cinema. Certamente, o artista bebia não só do Modernismo no geral, como principalmente no Surrealismo em suas produções.

Sua estreia foi com o longa-metragem Sangue de um Poeta, lançado em 1930. A história com clara influência surrealista,  abre com a seguinte frase: “Todo poema é um brasão. Há que ser decifrado […] livre para escolher os rostos, as formas, os gestos […] o autor dedica esse conjunto de alegorias”. Nesse caso, Cocteau ainda considerava o cinema como uma extensão para seu ofício, já que a estética fala mais alto, sem uma narrativa convencional. O Poeta (Enrique Riveros) descobre o processo de criação artística, ao interagir com suas próprias esculturas e reviver momentos importantes da vida. As referências ao Primeiro Cinema, que eram apenas pequenos curtas sobre alguma situação cotidiana ou bizarra – com inspirações de números circenses, estão aqui. Em um voyeurismo, ele observa através das fechaduras alguns números, como pessoas escalando paredes, nús artísticos, dentre outros. O elemento do espelho, como forma de atravessar e transcender a humanidade e artista dar vida a suas criações, mostram como o tema da imortalidade do arte está aqui. É com certeza seu trabalho mais experimental.

Seguindo adiante, a partir deste longa, Cocteau iria criar sua própria trilogia de filmes, assim como Coppola fez em O Poderoso Chefão, ou Peter Jackson em O Senhor dos Anéis. No ano de 1950, Orfeu chega a público, provando que o cinema surrealista conseguiria ser muito mais que apenas um meio. Sendo adaptação de uma peça de sua mesma autoria, a história (mais presente aqui) conta sobre um poeta chamado Orfeu (Jean Marais) que está prestes a se aposentar e rapidamente se apaixona pela Morte, personificada pela atriz María Casares, que desenvolve uma paixão mútua. Contudo, a esposa Eurídice (Marie Déa), acaba sendo morta por uma conspiração dos dois e o homem decide resgatá-la no mundo inferior. Com inspiração no mito grego do mesmo nome – que desce ao submundo para resgatar sua amada Eurídice das mãos de Hades, aqui temos um Orfeu narcisista, invejoso, niilista, mas sobretudo: com fascínio pela morte. Esse escritor tem medo de perder o que lhe pertence. O surrealismo se revela mais na estética de produção do que na história. Embora flerte com a morte, novamente temos o elemento do espelho que atravessa, transcende, mas também revela o verdadeiro ser – no caso do protagonista é o ego, e a mão enquanto pincel principal de qualquer artista. É através dela que se experimenta, cria, descobre e se atravessa o espelho – forma de chegar ao submundo. Logo, é um filme mais narrativo, mas completamente distante do clássico, com suas histórias idealizadas, românticas, burguesas e com finais felizes. Até porque, quando Eurídice o abraça, escutando do marido “o único amor que importa, é o nosso” eles nem se olham, provando a superficialidade da relação.

A Imagem surrealista sempre inova, surpreende, choca, descobre o sujeito e o objeto através de uma interpretação que percebe e sente a unidade. Todo um mundo de qualidades e funções é formado na memória através de uma sucessão de imagens. (MENDONÇA, p.2)

Um dos maiores acertos é a própria representação da morte. A atriz María Casares dá uma interpretação de poder, dominação e até certo deboche à persona. O modo como seu olhar é realçado pela iluminação, lembrando até o que Hollywood estava fazendo nessa época com o noir, traz uma entidade que pela primeira vez decide se apaixonar por um mortal. Ela nunca se prostra perante ninguém, apenas para o poeta, em um único momento, afinal, se no mito original, a morte imaterial separa o casal principal, aqui temos uma figura física que de fato os tira um do outro. Talvez o casal nem se amasse. Orfeu (como qualquer artista) gosta do desconhecido, de perseguir algo pelo mistério, e a Morte por finalmente achar alguém que se fascina por ela. Vale lembrar, que ele não é retratado como alguém em ascensão, começando a declinar pela idade e o filme trazendo-o como um entre muitos, abrindo com a pergunta “em que época se passa essa história?” e a câmera ficar passeando dentro de um bar e só depois achar o nosso protagonista. O meio também não é esquecido, já que o autor faz questão de colocar nos créditos de abertura, suas pinturas e seus rascunhos de poesia, que mostram sua fascinação com rostos.

O diretor parecia gostar de trazer personagens incompreendidos para suas mídias, afinal, se nos dois primeiros estávamos assistindo artistas conhecendo e descobrindo suas possibilidades, o último que fecha a trilogia, O Testamento de Orfeu, em 1960, traz o próprio Jean Cocteau como personagem principal interpretando a si mesmo. Já de início o filme nos diz: “O cinema une todos em uma ilusão, que parece realidade, como a poesia”, voltando ao conceito inicial de ser um meio para algo. A história é mais intimista, uma contemplação sobre sua vida, na qual o próprio poeta viaja no tempo e reflete sobre o fazer arte, sendo julgado por seus personagens pessoalmente, acusado de atravessar a fronteira entre o físico e o metafísico. O cineasta chega a ser “condenado a viver” pela Morte, novamente interpretada por Casares. Os cenários são gravados por trás de set de filmagens, expondo a ilusão cinematográfica, ganhando até participações de Pablo Picasso e da eterna musa francesa Brigitte Bardot, da qual segundo uma declaração cineasta “tinha muito mais do que apenas beleza e talento”.

Mesmo com o fim da trilogia órfica, o diretor continua transformando suas películas em uma teia, na qual todos possuem um único código, desde os mais experimentais até seu trabalho mais famoso e comercial: a versão francesa de A Bela e a Fera, na qual repete sua parceria com o ator Jean Marais pela 5ª vez. Ainda que seja muito fiel a versão da escritora Jeanne-Marie Leprince, o autor consegue imprimir sua estética, desde o castelo carregado de objetos extravagantes como mãos que seguram candelabros e servem comida, rostos vivos estampados nos móveis e nas estátuas, até muita fumaça com figurinos bem luxuosos, como a figura da Fera enquanto pessoa narcisista que nessa adaptação, consegue fazer a protagonista se apaixonar por ele, roubando a aparência de outra pessoa. Vale ressaltar novamente o elemento da luva e do espelho, que respectivamente, transportam a pessoa para onde quiser e revelam o interior de alguém. 

Como já citado, Jean Cocteau sempre preferiu retratar em tela personagens incompreendidos na realidade que estão inseridos. São pessoas que estão sempre em olhar de julgamento e se sentem sufocadas por algum motivo, sejam simples princesas em perigo ou até grandes artistas. O fato de ter sido abertamente gay na década de 50 e manter um relacionamento com o galã que estreava seus filmes, Jean Marais, foi motivo de muito preconceito na França na época da ocupação nazista. 

Tanto quanto me lembro, e mesmo numa idade em que a mente ainda não influencia os sentidos, encontro vestígios do meu amor pelos rapazes. Sempre amei o sexo forte que considero legítimo chamar de belo sexo. Meus infortúnios vieram de uma sociedade que condena o raro como crime e nos obriga a reformar nossas inclinações (COCTEAU, 1928)

Em suma, o cinema deve ser um meio ou um fim? Esse debate persiste até hoje, mas já foi muito mais discutido, principalmente quando a sétima arte começava a estabelecer a sua linguagem. Na vanguarda, foi muito usado por artistas plásticos para transmitir suas estéticas de revolução cultural. Futuramente, em 1948, o crítico Alexander Astruc iria escrever no seu famoso artigo “câmera-caneta”, precursor da Nouvelle Vague, que as vanguardas já estavam em desuso – chegando a chamá-las de retaguarda, e queriam apenas usar o filme como meio para a arte, e ainda que estivesse longe dessa futura tendência que fosse dominar o famoso cinema moderno, também estava muito distante de um típico clássico; ele seguiu um caminho contrário aos dois oferecidos. Mesmo tendo um repertório na literatura, no teatro, e na pintura, chegando ao universo dos longas-metragens, Jean Cocteau usou e abusou de suas próprias referências surrealistas para compor obras, e principalmente: criar um código, transformando-os em metalinguísticos dentro da sua filmografia, que os fizeram se tornar muito mais que um meio a ser alcançado, mas também um fim, que contemplasse todo seu repertório em vida. Ele sabia o poder do cinema; e através disso, fez com que todas as suas criações se unissem, levando suas abstrações para uma tela em movimento, carregada de consistentes e instigantes histórias.

Os filmes de Jean Cocteau estão disponíveis gratuitamente no YouTube e Vimeo

O Sangue de um Poeta (1930), de Jean Cocteau

A Bela e a Fera (1946), de Jean Cocteau

Orfeu (1950), de Jean Cocteau

Águia de Duas Cabeças (1948), de Jean Cocteau

REFERÊNCIAS

BRETON, Andre. Manifesto Surrealista. 1924. Disponível em <https://www.marxists.org/portugues/breton/1924/mes/surrealista.htm>

MENDONÇA, Fernando. O Sonho Surrealista no Cinema: Recordando a parceria entre Dalí e Hitchcock. Pernambuco. Disponível em <https://revistas.rcaap.pt/millenium/article/view/8358>

COCTEAU, Jean. The White Paper. França. 1928. 

 

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