Por Thaissa Proença

Texto originalmente escrito por Thaissa para a disciplina Antropologia I, ministrada por Olivia Von Der Weid, voltada ao curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense.

Plano aberto. O céu azul e a natureza preenchem a tela. No centro, uma criança sorri e se levanta, lentamente. Já vimos isso antes. Ela olha o horizonte e ouvimos uma música de triunfo. A suma de tudo o que vimos até agora, te digo, tem som de milagre. Tela preta. Assistimos à Panijao (na Namíbia), Bayarjargal (na Mongolia), Mari (em Tokyo) e Hattie (em São Francisco) em seus primeiros dois anos de vida. Os vimos nascer. E agora os vemos andar.

Dirigido por Thomas Balmès, Babies (2010) mostra o início da vida desses quatro bebês em meio ao gritante contraste entre suas culturas. De fato, mostra, com uso mínimo de diálogo, a escolha sábia de não usar qualquer tipo de voice-over (que tentaria explicar o inexplicável) e com imagens capturadas sob o ponto-de-vista do olhar de um bebê — apenas vemos o que lhe acontece e sua relação com os arredores.

 À exceção de alguns momentos excessivamente íntimos questionáveis, o documentário nos maravilha com a experiência do iniciar de uma vida e nossos olhos brilham junto dos bebês sorridentes quando olham a mãe ou quando passam por um pacote de cereal colorido no mercado. A cultura é ao mesmo tempo protagonista e pano de fundo. Cabe a nós, espectadores, interpretar.

Poderia a epidemia de déficit de atenção ser explicada pela falta de oportunidades para os bebês ficarem entediados no Primeiro Mundo? Como os bebês podem se concentrar quando coisas estão sempre sendo chacoalhadas e balançadas diante deles? Há informação demais entrando? Não sei. O que eu sei é que bebês são milagrosos. (Roger Ebert.)¹

 Tem. Um galo. Em cima da cama. Com a criança. Acho que o bebê está incomodado com o balançar incessante do chocalho sobre seu rosto. Sempre achei o conceito de aulas coletivas de canto voltadas para bebês engraçado. Admiro o yoga, mas ver um bebê de menos de um ano praticando me faz indagar sobre a real necessidade da prática. Assim como me preocupa o corte do cabelo de um infante ser feito por uma navalha e ver um recém-nascido ser amarrado de um jeito desesperadoramente apertado em uma manta.

 Assistir ao documentário partindo do “eu” como referência significa apontar quatro maneiras diferentes de fazer a mesma coisa do jeito errado.

 É muito fácil julgar. Mesmo. É menos trabalhoso para a mente e, por tanto, para o corpo. Preguiçosos que somos, optamos pelo raciocínio já pronto fruto de várias associações rasas acumuladas durante a vida e, assim, poupamos o nosso intelecto. (E nos sentimos bem com nós mesmos por termos um raciocínio pronto sem nem ter precisado usar o nosso intelecto). Talvez por isso o etnocentrismo já tenha estado tão em voga — e tenha, da eugenia ao nazismo, marcado tanto estrago na história da humanidade. A mixofobia de Bauman nos lembra apenas do pavor que temos do diferente.

 Vemos o mundo a partir de um ângulo particular, sob nossos próprios ‘óculos de realidade’ e o interpretamos de acordo. Afinal, somos todos criaturas, pseudo-Frankensteins, quando analisados por alguém de fora. Não iria uma cultura diferente da nossa achar estranho ver humanos escovando os dentes com escovas elétricas, pagando para correr sobre uma esteira como hamsters de noite enquanto desenvolvemos hérnias ao longo do dia por passar tempo demais diante de uma tela de cinco polegadas, acumulando neuroses, comendo o equivalente a vinte colheres de açúcar por dia e carregando cachorros em carrinhos de bebê rua afora? Quem usa parafernalhas demais e quem estimula seus infantes de menos? Quem faz escolhas culinárias questionáveis? Depende sempre do ponto de vista.

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 Acredito que não exista uma maneira “errada” ou “certa” de assistir à Babies. Repito, cabe à cada espectador interpretar como quiser. Não julgar, talvez, seria dar lugar para o diferente. Afinal, não somos (nós, humanos) assim tão diferentes. A ligação da maioria dos planos que interligam as cenas dos bebês é a realização da mesma atividade/ação, mas de maneira diferente. Eles nascem, sorriem ao ver o primeiro sorriso da mãe, experenciam a amamentação, se encantam com o seu redor, brigam e fazem as pazes com seus irmãos, se banham, caem e se machucam, engatinham, aprendem a andar e choram. Choram bastante. Cada babie dentro de um contexto. Vivenciam a própria cultura, assim como cada um de nós vivencia a nossa, com instrumentos, costumes e meios os quais nos estão disponíveis. Sobre a terra ou sobre o carpete de uma sala de estar, os bebês parecem felizes, saudáveis e amados.

Culturalmente todos nós sabemos qual é o jeito certo de comer, pensar, escrever, fazer tudo. É crucial mudar a perspectiva e perceber que há várias maneiras de fazer as coisas. (Thomas Balmès)²

Estaria Panijao a brincar com o perigo de uma mandíbula animal perto de seu rosto ou a simplesmente conhecer e se relacionar com mais um integrante da natureza ao seu redor? A navalha é o instrumento do qual sua mãe possui para cortar o seu cabelo, assim como uma tesoura ou uma máquina zero. O ritual de passar o pigmento de coloração avermelhada em sua barriga antes de parir é lindo e curioso.

 Assistir cada bebê ouvindo o canto à sua maneira, seja numa aula coletiva guiada por uma professora ou por um murmuro maternal é emocionante. Afinal, não é por acaso que o comportamento da família de Hattie em São Francisco foi o que menos chocou essa que vos escreve. (Chances são, meu pai também já me deixou cair de cara no chão no parquinho e me levantou fingindo que nada aconteceu). Quando o choque cultural é pouco, tudo se torna muito familiar. Interpretamos a partir do que nos identificamos, inclusive, culturalmente. Talvez, o relativismo cultural aqui, ou seja, não julgar qualquer uma dessas famílias de acordo com nossa visão do que “é” ou “não é”, “deve ser” e “não deve ser”, consista simplesmente em se permitir observar.

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 Eu poderia dissertar acerca do abismo social existente entre as quatro famílias, quando descubro que Panijao, dez anos depois, não pôde continuar a frequentar a escola. Mas não é disso que o documentário trata. Me pergunto, ainda, sobre os saberes que poderiam ser compartilhados entre essas quatro famílias e fico curiosa em saber se as crianças, hoje com mais de dez anos, tiveram a oportunidade de assistir um pouco dos seus primeiros dois anos de vida. Thomas Balmès disse que faria um novo documentário seguindo-os em qualquer idade: “cada estágio é fascinante. Faria muito sentido ver o que eles se tornaram. ”²

Afinal, os bebês, assim como nós, estão simplesmente vivendo. E se tornando pessoas. Cada um, um milagre, à sua maneira. Fascinante, de fato.

REFERÊNCIAS

[1] Roger Ebert em The Babies Are Cute. Well, All Babies Are Cute. Roger Ebert, 2010. [Tradução minha].

[2] Thomas Balmès para Focus Features em A Look At The Babies Of Babies, Ten Years Later [Tradução livre].

 

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