Por Thaíssa Proença.
Crítica escrita originalmente para a disciplina Rohmer e Rivette: da Crítica à Direção, ministrada pelo professor Gabriel Linhares Falcão no programa de Cinema e Audiovisual da UFF.
1964. Estados Unidos, terra onde sexo é mais chocante do que violência. O gerente do Heights Art Theatre no Coventry Village em Ohio, Nico Jacobellis, exibe Les Amants (1958), de Louis Malle. Ele é acusado por possessão e exibição de um filme obsceno e ordenado a pagar $2.500,00 em multa ($22.000,00 em 2019). Isso, ou ser preso.
Jacobellis v. Ohio: Os juízes, com dificuldade em acordar sobre o que se encaixa como obscenidade, proferiram diferentes opiniões. A mais famosa, a do juíz Potter Stewart, que não tentaria definir quais tipos de material encaixam-se nessa definição abreviada: “mas eu sei o que é quando eu vejo, e o filme envolvido nesse caso não é isso”. A Suprema Corte dos Estados Unidos reverte a condenação. A obra não poderia ser censurada – e a expressão “I know it when I see it” passou a ser utilizada de maneira coloquial, quando alguém se engaja na tentativa de categorizar algo subjetivo.
Analisar um filme é uma tarefa dolorosa. Principalmente quando se gosta muito da obra. Nesse caso, o processo é uma mistura de amor, admiração, dúvida, culpa e pesquisa aliados à uma bela dose de “eu acho”. Há de se dispor a manter-se sincera aos seus sentimentos em relação à obra, ao mesmo tempo em que se mantém o mínimo de profissionalismo. Se, idealmente, cabe ao crítico mostrar o que é e não o que significa, equilibrar o subjetivo e o objetivo. Ora, as intenções de Malle me são desconhecidas, o que posso e me disponho a fazer é refletir e explorar suas escolhas sem (espero) tentar mostrar o que significam. Afinal, quando refletimos sobre um símbolo, nos conectamos com ele, mesmo que fora do campo da razão. Portanto, aviso: interpretar Les Amants, por tantas vezes intangível, é o mesmo que engajar na tentativa de Potter Stewart de definir o indefinível: posso ficar por horas dissertando sobre o assunto, sem nunca chegar à uma conclusão definitiva. De qualquer maneira, vale a reflexão.
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Como um fantasma, ela vai para o lado de fora da mansão que lhe serve de morada. Emergindo da sombra, ele também está lá, como se a esperasse. Os olhos dos dois se encontram: “é você”. Mas ela o deixa, mesmo sabendo que ele vem atrás dela.
Ele é irritante e a entedia. Se refugia em seus sonhos, coisas das quais ela não gosta – mas ele não sabe do que ela gosta. Sua camisola quase virginal é esvoaçante toda vez que ela se afasta, física e emocionalmente, e a sombra toma o rosto daquele que a encontra. Nem parece que precisou procurá-la. Seus corpos se movimentam como ímãs, longe e perto, o tempo todo. Na madrugada, a luz da lua os ilumina:
“A noite é bela”. “A noite é mulher”.
Um som de sino ecoa pela tela: os copos de vidro nas mãos dos dois encostaram um no outro. Silêncio. Algo significativo aconteceu. O que estava implícito desde o início, em eterno crescendo. Ele vai beijá-la, mas não tem o direito e, em um instante, ela sente o pudor e o incômodo desaparecerem. Ela não hesitou. Não se resiste à felicidade. Jeanne e Bernard adentram a noite. Juntos e para longe. E ele nem tinha a pretensão de fazê-la companhia.
Richard Linklater afirmou em uma discussão sobre Le Rayon Vert (1986), que há nos fimes de Rohmer algo que não se consegue “alcançar” por completo. Creio que, aqui, o caso seja o mesmo: há a trama que se desenvolve, as motivações das personagens, uma direção primorosa, mas há, acima – por trás – de tudo, um nível de maior profundidade. Malle (que, arrisco dizer, criou um filme que só poderia ter sido feito por ele) consegue captar o indefinível, da ordem do sensorial, que transpõe e pulsa sob cada quadro do filme, que não necessariamente iremos e talvez nem deveríamos conseguir captar, um subtexto apenas tangenciado pela narração que revela os sentimentos de Jeanne. Foge à razão, simplesmente absorvemos, a despeito de qualquer justificativa.
Premiado com o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza de 1958 e indicado ao Leão de Ouro, Les Amants chocou ao mundo com sua sensualidade. Dirigido por Louis Malle, no mesmo ano de lançamento de sua estreia no longa-metragem com o também protagonizado por Jeanne Moreau Ascenseur pour l’échafaud (1958), o filme foi aclamado. Ele tinha 25 anos. Filho de família burguesa, Malle nasceu em Thumeries, no norte da França e iniciou seus estudos em ciências políticas, até que se rendeu ao amor pelo Cinema. Contemporâneo à Nouvelle Vague, por mais que não fosse membro do círculo interno do movimento, partilhava o amor pela autoria e o desejo de mudança de sua geração. Aqui, ele transparece seu conhecimento e sentimentos, adquiridos por observação ou empirismo, do tema que estaria presente na maior parte de seus feitos cinematográficos: os valores burgueses – Jeanne parece ter tudo e ser tudo, menos feliz.
A primeira imagem que temos de Jeanne (Moreau) é sob um chapéu. Ela assiste a um jogo de polo com a amiga Maggy (Judith Magre) e comemora a vitória de seu amante Raoul (José Luis de Vilallonga), montado num cavalo. Ela está em Paris de visita, onde passa a maior parte de seu tempo no que seu marido Henri (Alain Cuny) – quem ela suspeita que mantêm um caso com a secretária – descreve como um “lugar superficial”, para depois regressar a vida que leva em uma mansão e ao casamento frio. Um dia, ele insiste para que ela convide os amigos parisienses sobre os quais ela tanto fala para um jantar e, após muito resistir, ela cede.
No dia do encontro, seu carro quebra no meio da estrada e Bernard (Jean-Marc Bory) encosta para ajudá-la. Ele, então, a leva até em casa (e, no caminho, a provoca um acesso de riso incontrolável). Quando chegam, Henri insiste que aquele que ajudou sua esposa também fique. Durante o jantar, um ‘morcego inofensivo’ entrou pela janela e pairou sobre a sala. As luzes foram apagadas e um vela acesa na janela. Todos continuaram a conversar no escuro. “Ele se foi”. O ninho seguro da alta sociedade não é mais intocável e agora está vulnerável, como Malle mesmo afirmaria. Bernard, que vê tanto a vida levada em Paris quanto na mansão com pouco conceito, dormirá no quarto a poucos metros dali.
Durante a madrugada, Jeanne e Bernard se movimentam numa coreografia de tensão e relaxamento. Em meio à natureza, esta como seu habitat natural, passam por debaixo de um pedaço de madeira numa coreografia como se cruzassem uma passagem. “É incrível, realmente, um passo além da fronteira e um está ao mesmo tempo em uma terra estrangeira”, disse Raoul mais cedo. Seria amor? Seria paixão? Seria o encontro consigo que a protagonista tanto parece buscar em espelhos? O reflexo, que transpõe o vazio que ela sente.
No cinema, a luz é ideologia, sentimento, cor, tom, profundidade, atmosfera, história. Ela faz milagres, acrescenta, apaga, reduz, enriquece, anuvia, sublinha, alude, torna acreditável e aceitável o fantástico, o sonho, e ao contrário, pode sugerir transparências, vibrações, provocar uma miragem na realidade mais cinzenta, cotidiana. (FELLINI, Federico. Fazer um Filme, p. 182.)
Para Mira Nair, um diretor de fotografia é um “poeta da luz”. Em Les Amants, a luz a abrigar muito do “intangível” ao qual me refiro. Na estreia de Bernard Evian como Production Designer e com a direção de fotografia de Henri Decaë, o preto e branco capta uma profundidade que lembra um sonho que se tem no meio da madrugada, nossos olhos sempre absorvidos pelo contraste na tela e a textura que ele cria – a pele de Jeanne e Bernard chega a ser palpável. Repare como a luz da lua recai sobre o rosto dos dois no barco, ou no colar de pérolas que envolve o pescoço dela quando se amam. Aqui, forma e conteúdo não só são complementares, como também se entrelaçam. São inseparáveis, e é aí que mora a poesia.
Ao findar do filme, Jeanne e Bernard seguem de carro sob o nascer do dia por um caminho que nos é desconhecido. E que assim continuará. A fronteira está cruzada. Jeanne está em “terra estrangeira” e a vida nela é possível. O desejo venceu. O amor venceu. Não se resiste à felicidade.
Mas, afinal, quem sou eu para tentar decifrar poesia?
REFERÊNCIAS
Jacobellis vs. Ohio. Wikipedia
I Know It When I See It. Wikipedia
Fala de Richard Linklater no Youtube: Richard Linklater presents: summer (Le Rayon Verte). Austin Film Society. 2015
CHAVES, Belo Horizonte. Sob o desígnio moral: o cinema além do filme (1900-1964). UFMG, 2002.
SONTAG, Susan. Contra a interpretação. 1966
HUDSON, David. The First Amendment Encyclopedia. Obscenity and pornography. 2009.
The Lovers (1958). Wikipedia
Rosebud, Blog. Louis Malle, o autor viajante. 2020.
WAXMAN, Olivia. TIME. This is what americans used to consider obscene. 2016.
GARSON, Patrick. Sense Of Cinema. Les Amants. 2018
MARTINS, André Reis. A Luz no Cinema. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes / UFMG (Dissertação de Mestrado), 2004.