RRR está disponível na Netflix.
Épico.
Nenhuma outra palavra tem a capacidade de resumir RRR tão bem. O filme indiano mais caro da história (70 milhões de dólares) não esconde suas pretensões. Com mais de 3 horas de duração, o filme é um conto anticolonial com cenas de ação colossais, quilos de efeitos especiais e, claro, cenas de dança com dezenas de figurantes. Porém, se é a grandiosidade que chama a atenção para RRR, é o carisma de seus personagens e sua narrativa equilibrada entre o melodrama e a comédia, que faz com que ele cresça no coração de seus espectadores. Não à toa, o filme se tornou um fenômeno de público e de crítica – conseguindo atingir o posto de 2ª maior bilheteria da história do país.
Todo esse tamanho faz com que RRR enfrente um questionamento crucial: como se destacar mundialmente, quanto épico de ação multimilionário, quando é Hollywood que domina esse filão? E a resposta que RRR nos traz é inspiradora: confiar em sua própria cultura e em seu próprio modo de fazer cinema, recusando a se dobrar as convenções do cinema estadunidense. Não digo que RRR não faça concessões ao cinema hegemônico – afinal, a obra não esconde suas intenções em apelar pro mercado externo – mas é inegável que todo seu charme venha justamente de suas raízes tollywoodianas. Sim, tollywoodianas. RRR não é um filme da famosa Bollywood, mas é uma obra de Tollywood – segmento do cinema indiano dedicado aos filmes nas línguas do Sul da Índia, como é o caso do Telugu.
Aliás, se dobrar a Hollywood seria um contrassenso à própria narrativa anticolonial da obra. Afinal, RRR conta o bromance (narrativa de amizade entre dois homens) entre dois amigos que se descobrem antagonistas das histórias um do outro. O primeiro é um homem que sai de seu vilarejo jurando vingança contra o Império Britânico, após um administrador britânico sequestrar uma menina de sua terra natal. O segundo, é um oficial indiano que atende a todas as vontades da Coroa Britânica para conseguir alcançar seus objetivos. O destino coloca os dois amigos um contra o outro em uma caçada cheia de reviravoltas.
E quando eu digo cheio de reviravoltas, eu não estou sendo exagerado. Em suas pouco mais de três horas de duração, a obra não para um minuto sequer de surpreender seu espectador com mudanças narrativas. Sejam elas confrontos, romances, rompimentos, cenas de dança, flasbacks… Tudo de forma a avançar a história e aumentar o tamanho do conflito – o que faz com que sua longa duração quase não seja sentida pelo espectador.
Fundamental, porém, é que ao contrário dos épicos de ação Hollywoodiano – a ação em RRR tem um peso dramático substancial. Não existe nenhuma sequência que você não tema pelos personagens e, ainda mais importante, que não seja ocasionada pelo caminhar de suas jornadas. Em outras palavras: em RRR não são as cenas de ação que guiam a narrativa, mas é a história dos personagens que leva a ação. E pra quem gosta de ação – o filme não irá decepcionar, nem um pouco. Sem a menor tentativa de emular realidade, e sabendo que a obra se trata de uma fábula – não existe nenhum freio que impeça o diretor S.S. Rajamouli de conceber cenas verdadeiramente épicas e profundamente criativas.
É necessário enfatizar: as cenas de ação são inacreditáveis. Destaco aquela que envolve a invasão em uma prédio britânico, envolvendo vários animais, fogo e água – que, talvez, seja a cena mais empolgante que o cinema já produziu, desde que os Vingadores se uniram para enfrentar Thanos, em Vingadores: Ultimato. E lembrem-se, aqui não se trata de uma cena apoteótica cujo valor emocional advém de dez anos de construção pelas mãos da Marvel, mas de um filme indiano, que fala por si só. E como fala. Também destaco a dolorosa cena envolvendo um chicote, e que ressalta um dos elementos mais importantes do filme: a relação de seus protagonistas.
Falando neles, é importante nos debruçarmos sobre a profundidade do relacionamento entre Komaram Bheem, interpretado por Jr NTR, e Rama Raju, interpretado por Ram Charan, dois dos mais bem pagos atores de língua Telugu. Além do carisma de ambos e de sua química inegável, é crucial ressaltar como a obra não tem medo de explorar a relação e afetividade de ambos. Em um mundo onde a masculinidade tóxica dificulta que homens heterossexuais criem relações profundas, os protagonistas de RRR não tem medo de se abraçar, de compartilhar segredos, expor suas fragilidades e nem de chorar copiosamente. Isso, por sua vez, faz com que abracemos a relação entre Bheem e Raju e sintamos profundamente quando ela é abalada.
Como contraponto, porém, vale ressaltar que a obra acabe se apresentar como uma grande ode à masculinidade heroica – personagens de fé e coragem inabalável, determinados à resolver todas as situações com força e violência. Destaca-se também o papel quase inexpressivo das mulheres, ocupando as clássicas posições de damsel in distress (damas em perigo), interesses românticos, vilãs megeras ou de suporte.
Porém, se essa perspectiva machista impacta na apreciação da obra, o forte tom anti-colonial impede que ela seja apenas mais um filme sobre homens poderosos. Assim, apesar de contar a história de dois personagens sobre-humanos, RRR não deixa em nenhum momento de dar o devido protagonismo ao povo indiano – se diferenciando muito das obras Hollywoodianas de um “exército de um homem só”. Aqui, Bheem e Raju não são indivíduos que vem para salvar uma Índia rendida aos colonizadores em plena década de 20, mas são avatares que dão vazão aos desejos e anseios daquela população. Nesse sentido, o exagero das cenas de ação, ajudam a ressaltar esse aspecto mítico e lendário da narrativa. Bheem e Raju representam a pluralidade e a história da Índia, como fica bem claro nos flashbacks que contam suas trajetórias.
Por fim, é impossível não comentarmos as cenas musicais – tão vinculadas ao cinema indiano. Da épica Raamam, Bheemam, até a divertidíssima e dançante Desi Nach – o filme tem uma trilhas sonoras diversificada, empolgante e viciante. Quanto a isso, vale a pena comentar como é refrescante ver a forma múltipla como RRR abraça a ideia de gênero cinematográfico. O filme se apresenta como Épico, Ação, Aventura, Guerra, Comédia, Melodrama e, claro, Musical – superando a forma arcaica e unidimensional como Hollywood se acostumou a trabalhar seus gêneros.
Enfim, se trata disso. RRR é um filme que não tem vergonha em não seguir a cartilha batida de como o cinema Hollywoodiano se acostumou a planificar o cinema, para atingir públicos além mar. Tal como Bacurau e Parasita fizeram nos últimos anos, RRR se mostra tão anti-colonial quanto sua própria narrativa. Ao se tornar um hit da Netflix, ele demonstra mais uma vez que Hollywood não é detentora do monopólio do entretenimento e do cinemão.
E que isso traga lições para a própria Hollywood.