Crítica originalmente escrita por Pedro Tao para a disciplina do professor Daniel Pinna, do departamento de cinema e vídeo da UFF.
Filme disponível na Netflix.
A nostalgia é um sentimento peculiar. É saudade e memória. Duas grandezas imateriais que, invariavelmente, perdem-se, reorganizam-se, confundem-se no emaranhado da vida e nas necessidades do crescer. Lembrar, com carinho da infância, por exemplo, afastado temporalmente, é completamente distinto de ter vivenciado, segundo por segundo, aqueles acontecimentos.
O cinema, como qualquer outra arte (e indústria) vive de tendências. Hoje, é muito claro no cinema dos Estados Unidos que a nostalgia é uma saída mercadológica. No que tange o mainstream, o remix de franquias (modelo que existe há tempos, mas atingiu seu ápice com o Universo Cinematográfico da Marvel) que estagnaram há mais ou menos vinte anos atrás é como a indústria se apropriou da nostalgia. Entre dezembro de dois mil e vinte e um e janeiro de vinte e dois, os cinemas passaram Pânico 5, Matrix Ressurections e Homem-Aranha: Sem Volta pra Casa.
Pânico tinha seu terceiro filme da série em 2000, e o quarto foi lançado onze anos depois. Mais onze anos e um novo filme na série, o 5, que agora surfa nessa trend do resgate às franquias da década de noventa e anos dois mil. Matrix, talvez a obra contemporânea fundamental para pensar o século XXI, desde as inovações tecnológicas da produção até as metáforas narrativas associadas aos easter eggs, havia parado na terceira produção em 2003, e nessa retomada em 2021 volta refletindo sobre o papel dos blockbusters, suas motivações empresariais e tirando sarro da Warner Bros., uma postura completamente distinta do convencional blockbuster americano perto da temporada de feriados da virada do ano. Homem-Aranha e a reintegração de outros que encarnaram o traje vermelho ao longo dos anos, despertando, desta vez, não uma nostalgia fabricada através da própria cultura pop (como Stranger Things vende os anos oitenta para adolescentes nascidos nos anos 2000), mas da vivência de ter assistido ao Tobey Maguire no cinema, ou ter reproduzido os dvds a exaustão.
A outra chave que o Hollywood decidiu introduzir a ideia de nostalgia é dos “autores”. Ainda são produções dos grandes estúdios, mas o logo que aparece é de suas desinências mais “arthouse”, supostamente sofisticadas e menos comerciais. São filmes que disputam os prêmios porque trazem (alguns) nomes de prestígio para os projetos. Quentin Tarantino, Paul Thomas Anderson, Alfonso Cuarón, Kenneth Branagh, James Gray e Richard Linklater são alguns dos nomes que trouxeram o aspecto nostálgico pro cinema de autor. E o denominador comum entre as produções de pessoas tão distintas é uma: suas respectivas infâncias. Roma, Belfast, Armageddon Time, Licorice Pizza, Era uma Vez em Hollywood e Apollo 10 e Meio, todos, dentro da lógica de cada diretor, refletem sobre suas infâncias, ponderam sobre seus arredores, investigam seus zeitgeists.
Licorice Pizza e Era uma Vez… são os melhores nesse mergulho da infância porque, além de terem uma bela reprodução espacial de onde ocorreram esses momentos, no aspecto mimético, possuem ideias cinematográficas que discorrem ao longo de suas até que grandes durações. Tarantino recria a Los Angeles de seu tempo de infância e se delicia nisso, mas o filme é, verdadeiramente, sobre o poder constitutivo das imagens. A trágica vida de Sharon Tate, durante as duas horas e quarenta de duração do filme, existe como um universo paralelo. A verdadeira Sharon é a que entra numa sala exibindo um filme seu e vive nas risadas do público arrancadas pela sua personagem. O Bruce Lee que apanha de um dublê. A ficção que é parte fundamental da realidade, a câmera que borra todas as linhas.
Já Licorice Pizza parece interessado no que importa-até-não-importar-mais. Aquilo que enquanto você viveu era o mundo, e com o passar do tempo o significado das ações (e a própria lembrança) vai minguando até virar uma curiosidade sobre você mesmo: o primeiro beijo, o primeiro dinheiro ganho com seu suor, o primeiro par de seios que colocou os olhos. PTA parece interessado em encapsular as memórias que fazem quem nós somos, mas que efetivamente, são só memórias. O Cinema eterniza, cristaliza.
É nessa circunstância que nos deparamos com Apollo. Houston, 1969. Um período muito registrado na história dos Estados Unidos, principalmente pela corrida espacial, Linklater procura a profusão do macro numa microescala. A paranóia da Guerra Fria, intravenosa em cada centímetro da cultura, funciona mais como um pano de fundo das relações. A ideia, aqui, é quase como a de um avô relembrando seus tempos para os netinhos. O filme toma uns bons quarenta minutos para funcionar numa lógica de monólogo, com descrições bem detalhadas de como o pai descartava as latinhas no próprio carro. Existe uma narrativa introduzida no início do filme, mas o que ele quer mesmo é a manutenção da tradição da oralidade no relato de épocas.
Entre as falhas da memória tanto da descrição do passado e no conto “presente”, a rotoscopia parece a técnica perfeita para destacar exatamente o bem imaterial do lembrar. Assim como a câmera tarantinesca chacoalha a linha entre real e ficcional, a rotoscopia brilha no cruzamento entre a fantasia do menino que mora na cidade da Nasa com o espírito do tempo. O problema, talvez, seja a estruturação do contar. A narrativa de que nosso protagonista foi ao espaço é diminuída pela sua alocação exclusivamente no começo e no fim da obra. Como se não se misturasse com o monólogo expositivo sobre a época. O grande brilho da técnica de animação, que vai exatamente brincar com as possibilidades estéticas infinitas, limita-se a existir em blocos: ora registro oral, ora lisergia narrativa.
Em sua totalidade, Apollo Dez e Meio é um filme que fascina pelo charme da fluidez de suas imagens, que transitam com graça da rígida aplicação em casa dos irmãos, à tia louca conspiracionista. Tudo tem muita vida, muita personalidade, mas o filme parece se curtir mais quando soa quase que como um documentário, já que os traços narrativos parecem só uma exigência comercial. O filme existe no seu miolo, enquanto investiga a cultura americana pelas lentes juvenis de um cineasta nostálgico.