A primeira cena de Pleasure (2021), filme de Ninja Thyberg que estreou na MUBI na última sexta-feira, começa com a protagonista sendo entrevistada na polícia federal do aeroporto de Los Angeles. O policial pergunta se ela está no país por prazer ou negócios e ela responde que está por prazer. Este diálogo, serve como síntese das ideias apresentadas por Thyberg: a pornografia é um espaço que pode ser prazeroso para as mulheres. Contudo, longe de construir um discurso superficial, a cineasta sueca aponta que ter agencia não é sinônimo de felicidade infinita. O maior mérito do longa é destruir as dicotomias que analisam a pornografia como algo bom versus algo ruim. Pleasure não tem medo de expor o conflito e as contradições de um debate caro ao feminismo: o trabalho sexual.
A protagonista do longa-metragem é Bella, uma jovem sueca que chega a Los Angeles com o sonho de se tornar uma estrela pornô. Sua ambição pelo estrelato, fazem com que ela experiencie a indústria pornográfica de forma intensa e questione o que está disposta a fazer para atingir seu objetivo. Através da vida de Bella, o público é convidado a refletir sobre as próprias certezas que possui acerca da indústria pornográfica. A personagem não é construída como uma vítima ingênua, mas como uma mulher que possui ambição de carreira. Isso não significa que seu ambiente de trabalho não seja misógino, racista e hostil, mas é também repleto de companheirismo, profissionalismo e prazer. O filme, indicado ao Festival de Sundance no ano passado, não está interessado em excluir a contradição para determinar um ponto de vista coerente, mas sim, expor a contradição de maneira reflexiva.
A diretora consegue criar um retrato interessante do dia-a-dia das pessoas que atuam na indústria pornográfica, desconstruindo estereótipos e revelando um cotidiano que costuma ser desconhecido. Atores pornôs não são só os personagens que interpretam. Eles existem fora das câmeras. Possuem sonhos, comem pizzas, têm animais de estimação, usam redes sociais. Como aponta a socióloga Mireille Miller-Young (2014), os atores pornôs trabalham satisfazendo as fantasias do público, mas esses trabalhadores possuem seus próprios sonhos, fantasias e projetos de vida. É interessante a forma como o filme expõe as dinâmicas de amizade no set de filmagem. Os atores brincam, pausam a cena de sexo para mudar de posição. Todo o antecampo que não costuma estar presente nos filmes pornográficos é revelado. O sexo, visto aqui como trabalho, faz parte da rotina dos trabalhadores. Além da amizade, também existe a rivalidade feminina e as subjetividades em torno da ética de trabalho. Ao analisar a pornografia sob a ótica do trabalho, Thyberg revela um espaço riquíssimo para pensar as contradições do sistema capitalista.
Em entrevista para Film Independent, Ninja Thyberg afirmou que era uma feminista anti-pornografia, contudo, com o tempo, a cineasta foi mudando de opinião e começou a perceber que não é possível analisar a indústria pornográfica de forma tão dicotômica. Ela começou a investigar pornógrafas feministas e percebeu que era possível realizar outras representações sexuais. Depois do sucesso do curta Pleasure (2013) no Festival de Cannes, a sueca decidiu que gostaria de investigar a fundo os trabalhadores da indústria pornográfica e dar continuidade ao curta através de um longa-metragem. Suas entrevistas com profissionais da indústria para a realização do longa começaram em 2014. Um dos elementos que legitimam o filme como uma narrativa autêntica é o fato de que todos os atores, com exceção da atriz principal Sofia Kappel, são pessoas da indústria pornográfica de verdade.
As reflexões sobre male gaze propostas pela cineasta são interessantes. Pênis aparecem com muita frequência, mas só uma vulva aparece em quadro ao longo do filme. Nas cenas em que a personagem principal está no set de filmagem alguns planos apresentam o ponto de vista de Bella, que olha as câmeras em contra-plongée. Se as câmeras operadas por homens olham para a mulher, ela olha de volta, não é um objeto passivo. O objetivo de Pleasure é mostrar o ponto de vista de uma atriz pornô, faz todo sentido que o olhar da câmera seja o olhar da protagonista. Muitas cenas possuem espelhos, objetos necessários para que as atrizes produzam suas maquiagens de cena. O espelho também reflete as conversas amigáveis das profissionais. As atrizes pornôs tiram selfs, gravam vídeos com seu celular, contemplam suas imagens nas redes sociais. As câmeras de filmagem, as câmeras dos celulares e os espelhos denunciam a sociedade obcecada por imagem.
Uma das cenas mais interessantes de Pleasure é a que Bella está em um set de filmagem comandado por uma mulher e irá realizar uma gravação que envolve práticas de BDSM. De todos os filmes em que a protagonista atua, este é o único em que aparece um vibrador. A diretora do pornô que comanda o set, manda o ator estimular Bella com o vibrador até que ela goze. Antes das práticas consideradas “violentas” a diretora pergunta o que a atriz pornô consente em fazer e combina palavras de segurança caso ela queira parar a cena. Tudo é feito de forma sã, segura e consensual. Todos os profissionais são éticos e amigáveis.
Já em outro set de filmagem, dirigido por um homem, a fantasia interpretada por Bella também envolvem práticas violentas, mas a personagem não se sente segura, a equipe de filmagem não tem o cuidado de preparar a atriz para a cena. O seu bem-estar e o seu prazer não estão em jogo. Thyberg expõe como existem muitas formas de se produzir pornografia, ela não pode ser generalizada. Pornografia não é sinônimo de abuso contra as mulheres, mas as violências existem, principalmente por aquilo que a antropóloga Maria Elvira Diaz-Benitez (2014) chama de fissuras da sexualidade. Mesmo depois de consentir, uma atriz pornô, ou qualquer pessoa que tenha consentido em fazer sexo com outra pessoa, pode romper o pacto empreendido com o outro. As negociações de consentimento são delicadas porque o que é considerado prazeroso pode mudar durante o ato sexual. Estas fissuras da sexualidade, que envolvem as relações de poder, são vividas pela protagonista do longa-metragem.
Segundo Thyberg, seu desejo como cineasta era mostrar que os profissionais da indústria pornográfica eram pessoas comuns. Contudo, alguns atores do filme não ficaram satisfeitos com a interpretação da cineasta sueca, alegando que o filme possui uma visão negativa do trabalho sexual. De fato, o filme parece concluir que a indústria pornográfica não vale a pena. Diferente do filme argentino Alanis, em que a violência policial e o estigma social são o que torna o trabalho sexual difícil, em Pleasure os modos de produção da indústria pornográfica são vistos como prejudiciais. Apesar do título envocar prazer, a representação do trabalho sexual apresenta mais pontos negativos que positivos. Entretanto, Pleasure é um filme aberto a interpretações e pode ser útil para descontruir as certezas cristalizadas a respeito das mulheres na indústria pornográfica.
Referências bibliográficas:
MILLER-YOUNG, Mireille. A taste for brown sugar: black woman in pornography. Durham Duke University Press, 2014.