Crítica de Lígia Maciel Ferraz
Crítica originalmente feita por Lígia Maciel Ferraz para o site Medium acerca do filme Nheengatu – A Língua da Amazônia, dirigido pelo português José Barahona, que abriu a 18ª edição do DocLisboa.
Nheengatu – A Língua da Amazônia, dirigido pelo português José Barahona, é um documentário em que o cineasta viaja pelo alto Rio Negro, na Amazônia, para registrar como vivem os indígenas que falam Nheengatu — uma língua pertencente à família linguística tupi-guarani imposta pelos colonizadores no século XV.
Com o intérprete do intérprete Edson, José Barahona chega aos locais desejados para gravar, não abre a câmera sem antes conversar com os chefes das comunidades para explicar o projeto, a negociação e algumas formas de pagamento. A conversa leva geralmente em torno de duas horas, e, segundo o cineasta, demora demais. Esse já um dos sinais que a abordagem escolhida se baseia numa hierarquia entre quem detém os meios de produção e quem é o objeto do olhar. No entanto, os indígenas recusam-se a ser objetificados, e marcam, irreversivelmente, o filme com aquilo que falam.
As imagens de Nheengatu são feitas com uma câmera profissional operada por um cinegrafista e também com dois celulares. Um dos celulares Barahona usa como se fosse a extensão do seu olhar. Porém, esse olhar revela-se impositivo. Barahona é alto, os indígenas são baixos. A câmera, por estar sempre em um projeto mais alto, em plongée, faz com que diminua os indígenas imageticamente. Mesmo sentados, os braços compridos do cineasta não conseguem evitar a câmera próxima demais do rosto do entrevistado — é por causa do microfone, ele diz. O celular parece ser a armadura do português, pois em vez de Barahona mediar o encontro entre o indígena e a câmera, é a câmera que faz essa mediação. O outro celular cede, rapidamente, aos indígenas. Não cede, os indígenas pedem, pelo contrário.
O crítico Jean-Claude Bernardet, no livro Cineastas e Imagens do Povo (1985), questiona o ato de dar a câmera ao outro no filme Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino. Para o autor, Raulino abre a mão da sua posição enquanto filmadora para que o lavador de automóveis Deutrudes Carlos da Rocha assuma. No caso de Nheengatu, Barahona nunca abre a mão da sua posição do cineasta. Os indígenas que filmam são filmados fazendo isso. De posse do celular, registram as suas casas, os objetos na própria aldeia, os materiais com valores simbólicos, as diferentes etapas da preparação de alimentos, os objetos, a própria aldeia e, também, o próprio filme.
Na análise de Jardim Nova Bahia, Bernardet afirma que Deutrudes é quem segurava a câmera, mas se questiona em que medida ele realmente filmava. Quem tomou todas as edições como outras decisões de trilha foi Raulino. Segundo o autor (1985), “não basta ter a câmera na mão; Deutrudes não detém os conhecimentos dos técnicos e linguistas que acabaram de trabalhar, e seu material para ser recuperado pelo talento, prática e pelo estilo de serulino”. Para Bernardet, Detrudes não tem o poder de decisão, e a posse da máquina está nas mãos de Raulino. Nesse sentido, Jardim Nova Bahia é, para o autor, um filme sobre os meios de produção, em que Deutrudes só se afirmaria enquanto sujeito se assumisse o filme como produtor e autor. Da mesma forma, em Nheengatu. Mas isso não é nenhuma surpresa. Afinal, como o próprio realizador explica ao primeiro indígena para quem dá a câmera, o objetivo é que o indígena faça imagens “para a gente usar no nosso filme”. O “nosso filme”, evidentemente, não é o filme dele e do indígena, mas sim dele e da equipe técnica.
Em Nheengatu, uma mulher indígena registra outra mulher trabalhando. A que trabalha pergunta a colega por que ela filma. Sem desligar a câmera, ela responde que faz porque “os brancos pediram”, e comenta sobre o celular que segura para filmar. Diz querer um celular daquele, que é da marca Samsung, que a imagem é boa, mas que não tem dinheiro para comprar. O cineasta dá-lhe um celular que ela não pode comprar, mas com o qual suas imagens serão veiculadas sem ela ganhar nada com isso. Enquanto a mulher filma aquilo que o português quer, ela deixa a sua marca: seria bom se, em troca das imagens que ela produz, ele pagasse-a com um celular como aquele. Quanto vale, afinal, a imagem que o indígena produz, ou a sua própria imagem produzida por câmeras alheias?
A equipe de filmagem também passa pelo local onde vivem os Yanomami e parece se interessar em tê-los no filme por serem um dos povos indígenas mais conhecidos do Brasil, mesmo que não falem nheengatu. O líder do local é filmado usando o seu traje típico. O cineasta pergunta se ele se veste assim sempre, o líder responde que o usa para as danças, ou quando os brancos chegam o pedem. Quando o procuram pela primeira vez nas filmagens, esse líder diz que é justo que paguem quando a equipe quer filmar e entrevistar os indígenas. Em seguida, vemos os sacos de arroz e de outros alimentos sendo distribuídos aos indígenas.
Talvez pelo pagamento, os Yanomami sejam criados com esse tipo de abordagem do homem branco, como o único momento do filme que vemos uma negociação a respeito das imagens. Se caso a equipe não fosse paga, ofereceria pagamento? Depois, quando buscam os melhores locais para abastecer o bar, o chefe aparece em busca do rio para pescar. O cineasta nega, pois o acordo já foi feito. O chefe insiste, diz que esqueceu de incluir isso no acordo inicial, mas o cineasta não cede. O celular na mão de Barahona registra, de cima para baixo, o momento constrangedor que o indígena, líder do local, passa; registra uma conversa que deveria ser privada, mas, como já havia acordado antes, agora serve de material ao filme. E ficou por isso.
Outro tipo de pagamento comum parece ser o frango. Os indígenas, quando filmados enquanto “agiam naturalmente” aproveitavam para debochar entre si sobre o não pagamento do frango. Uma senhorinha zomba com os seus sobre terem que fingir que conversam sobre qualquer coisa enquanto o branco filma. “Perguntaram o que eu comi”, ela diz, “respondi que foi peixe, já que o frango não chegou”. Os outros indígenas a sua volta riem. Um deles responde: “deveria ter respondido que comeu vento”. Mais risadas. “Vamos beber café para o branco ver que índio bebe café”. E riem. Outras duas senhorinhas, já cansadas de responder perguntas vazias e trabalharem em frente à câmera, perguntam se a equipe já pode trazer o frango. Em outro momento, elas encenam como fazem a farinha de mandioca. Um homem puxa a corda do motor a gás e elas empurram a máquina de mandioca.

Barahona pede que os indígenas “ajam naturalmente” enquanto conversam entre si em nheengatu, como se a câmera não estivesse ali. Cientes da impossibilidade disso, é quando os indígenas mostram o motivo de nheengatu ser uma língua de resistência. Enquanto agem para “o branco ver”, recusam a naturalidade e marcam o filme através do humor. Por meio da língua, tornam-se sujeitos. Nesse sentido, os indígenas estão à frente do cineasta e do público, que precisam aguardar o intérprete ou as legendas para saberem que os indígenas riem dos brancos que os assistem. O filme cresce quando o realizador se afasta. É a autoria do indígena que marca a obra salvando-a de um constrangimento total. Outro indígena contata que usa a zaraba para caçar passarinho macaco e “homem branco”. Não fosse pelas risadas das senhorinhas que espiavam pela janela, o fato poderia ser considerado verdadeiro, e não um deboche. Afinal, que português não duvidaria?
Entretanto, o modo de aproximação com os indígenas do filme Nheengatu falha ao não indagar sobre as questões materiais dos povos indígenas. Falha em tratar a ação de “dar câmera ao índio” sem considerar que reproduz estereótipos e sem questionar sobre quem detém os meios de produção. Será que os indígenas aceitariam participar desse filme (e de outros que lucraram em cima das suas imagens)? Se ajustariam em todas as suas necessidades? Os filmes com essa abordagem, aceitariam que já chegassem com ideias, objetivos claros, com uma equipe técnica e um plano de filmagem prontos?
Produções brasileiras recentes que incluem os indígenas no processo de criação e de realização do filme mostram alguns resultados. Por exemplo, para realizar A Febre (2019), Maya Da-Rin contou ao Cine Festivais que ficou cinco anos fazendo o desenvolvimento, a pesquisa e a construção do roteiro antes de iniciar as filmagens. Durante a preparação do elenco, Da-Rin incorporou ao filme hábitos e histórias dos indígenas que vivem na região de Manaus. Todo o processo surgiu a partir do encontro com eles, e não o contrário. Em Chão (2019), de Camila Freitas, sobre a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na ocupação da Usina Santa Helena, em Goiás, o processo do filme aconteceu coletivamente. O resultado é um encontro entre quem filma e quem é filmado. Em entrevista ao MST, a diretora afirma que “uma das coisas que mais tem sido entendida, na prática, é que um filme assim não se faz sobre, só se faz com, junto ao movimento, em uma relação muito próxima. E a relação que se estabelece com as pessoas filmadas precisa ser pensada e repensada o tempo todo por quem faz filmes”. Em Chuva é Cantoria Na Aldeia Dos Mortos (2018), de Renée Nader Messora e João Salaviza, a diretora passou na Aldeia da Pedra Branca, no Tocantins, para trabalhar com os indígenas gravando histórias, ritos, mitos e cantigas que estavam se prolongando, como escreveu Letícia Mendes. Em Los Silencios (2018), de Beatriz Seigner, a diretora reescreveu todo o roteiro após conversar com as pessoas da Ilha da Fantasia, local onde se passa o filme.
Nheengatu marca o encontro de forma hierárquica, em plongée. José Barahona chega nas aldeias carregando dois livros cheios de anotações. São livros escritos por cientistas passados que estão em contato com os indígenas da região. Ele mostra um dos livros para um indígena que escreve sobre como era o local na época. O indígena segura o livro nas mãos, vê as imagens e comenta com uma mulher ao seu lado como gostaria de tê-las para si. Em O Abraço da Serpente (2015), de Ciro Guerra, há uma situação parecida. O cientista mostra ao indígena um livro com diversas imagens de outros indígenas daquele mesmo local. Em ambos os filmes, um detém o poder sobre o outro, e as imagens voltadas para as imagens são oriundas de um olhar eurocêntrico. Não por coincidência, tanto Nheengatu quanto O Abraço da Serpente se passam nessa região do alto Rio Negro, na fronteira entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela. No filme de Guerra, há um europeu que incorpora o conhecimento científico hegemônico, mas que precisa dos ancestrais dos indígenas para se curar de uma doença mortal.
A doença mortal de Barahona é o colonialismo. É a necessidade de locais onde os seus antigos ancestrais marcaram esses locais. Ele termina o filme “desbravando” a mata, apenas com o seu celular, sem a equipe técnica, e acaba por encontrar ruínas dos tempos coloniais e o túmulo de um português. Nheengatu é menos sobre a língua indígena e mais sobre a liberdade que o homem branco europeu tem de transitar por territórios alheios, trocando imagem e saberes por poucos mantimentos. A viagem do cineasta segue, agora com um filme debaixo dos braços a display por festivais mundo afora. E os indígenas, acabados os seus mantimentos, terão mais uma história para contar sobre os brancos que ainda querem ver como o indígena vive.