O vencedor do Festival de Berlim do ano passado, Má sorte no sexo ou pornô acidental, chegou aos cinemas brasileiros no dia 2 de junho. É raro que uma comédia ganhe o Urso de Ouro, contudo, o filme romeno retrata perfeitamente o mundo atual e mostra como é possível utilizar o humor – presente no roteiro, na montagem e até mesmo nos movimentos de câmera – de forma crítica. O roteiro do filme, inicialmente, não incluía a pandemia, contudo, com a chegada do coronavírus, o diretor, Radu Jude, decidiu inclui-la de forma muito criativa, o que faz com que a obra se torne um retrato único do período em que vivemos. Além das máscaras e medições de temperatura, as fake news circulam de forma ampla entre as falas dos personagens do filme romeno, conseguindo representar, através de um humor ácido, um mundo pandêmico que ninguém sabe lidar direito.

A protagonista do filme é Emi, uma professora de História de uma escola conservadora em Bucareste. Um vídeo íntimo em que ela faz sexo com o seu marido vaza na internet e, com isso, ela corre o risco de ser demitida. A escola realiza uma assembleia, uma espécie de julgamento de conduta moral, para decidir se a professora será demitida ou não. O assunto do filme é sério, contudo, Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental é uma comédia sarcástica em que as acusações que a protagonista recebe são tão absurdas que chegam a ser engraçadas. Apesar de cômicas, muitas das opiniões manifestadas pelos personagens conservadores poderiam ser reais. O efeito crítico do filme romeno se dá pela sua capacidade de ser absurdo e, ao mesmo tempo, muito realista. Uma situação parecida poderia facilmente estar estampada nos jornais brasileiros. Aliás, o retrato da cidade e das personagens representam uma Romênia bem parecida com o Brasil.

A primeira cena do filme é o próprio vídeo explícito gravado pela professora e seu marido. É interessante que o sexo presente no vídeo, atacado de forma cruel pelos pais dos alunos, seja realizado por pessoas casadas e heterossexuais, ou seja, apesar de ser condenado de forma moral, o sexo apresentado é aquilo que é esperado da norma. O vídeo caseiro segue todo o repertório coreográfico de um filme pornográfico mainstream: sexo oral, sexo penetrativo e ejaculação masculina. Em um determinado momento do vídeo caseiro, ouvimos a mãe da protagonista gritar através da porta do quarto. Emi para de chupar o marido para respondê-la. A professora mora com a mãe e possui uma filha pequena. Isso não significa que ela não tenha desejos, fantasias e uma vida sexual ativa.

A personagem consentiu em realizar o vídeo, esta era uma forma dela construir seu próprio prazer de uma forma subjetiva. O ato de se gravar transando pode ser uma prática sexual prazerosa. Contudo, através dos modelos hegemônicos de sexualidade, realizar ou consumir pornografia faz parte das práticas sexuais que não são bem vistas. Quando a vida íntima de Emi é revelada, ela é condenada, não só por ter feito o sexo, mas pelo ato, que deveria ser conservado em segredo, ter sido exposto. Ao sentir o desejo de ser gravada fazendo sexo, a sexualidade de Emi, que a princípio poderia ser considerada aceitável para a norma, se torna imoral. Se antes ela era considerada uma mulher boa, uma mãe e esposa, pelos olhos dos censores morais, ela se transforma rapidamente em uma pervertida. Tudo isso pelo simples fato de ter registrado com uma câmera suas práticas sexuais. Aliás é notável que o comportamento de seu marido, que também aparece no vídeo, não sofra as mesmas repressões morais.

O filme não toca na questão de que vazar e compartilhar imagens sexualmente explícitas sem o consentimento pode ser crime. Pelo menos no Brasil, através da lei 13.718/2018, a divulgação não consentida de imagens de sexo ou nudez foi criminalizada. Fazer com que um crime seja visto como apenas uma gafe ou uma anedota divertida pode esvaziar um debate sério. O próprio título do filme, que é muito criativo e engraçado, acaba tratando o crime de compartilhar imagens sem o consentimento como um simples azar da personagem. Ela não teve sorte e sem querer fez um pornô que caiu na net, quando, na verdade, este acontecimento afeta de formas profundas a vida das vítimas.

Além do título bem-humorado, é notável como os movimentos de câmera conseguem construir uma narrativa engraçada. O filme é dividido em três partes. Na primeira, vemos a protagonista caminhar pela cidade. Nós já vimos sua sex tape, é como se conhecêssemos algo extremamente íntimo e constrangedor da personagem. Contudo, a câmera que acompanha a protagonista se perde por outros pontos interessantes da cidade, a vida íntima da professora é pequena em relação ao mundo. A câmera, que funciona como uma personagem, observa os outdoors de propagandas com modelos seminus – a hipersexualização é usado como estratégia de marketing. As gárgulas de homens pelados no alto de construções antigas mostram que as representações dos órgãos genitais sempre estiveram presentes na sociedade. Uma senhora em um café faz comentários gordofóbicos, regulando os corpos alheios. 

Enquanto caminha, a protagonista tem que desviar dos carros estacionados irregularmente na calçada que impedem que os pedestres circulem. Os carros, assim como o vazamento ilegal de seu vídeo íntimo, fazem com que a personagem precise mudar seu caminho, sua circulação está limitada. As pessoas na rua xingam umas às outras utilizando palavras relacionadas à sexualidade. Esta mesma sociedade, que fala, vê e pensa em sexo o tempo todo, é a que condena moralmente uma mulher por gravar um vídeo transando.

Na segunda parte do filme, Radu Jude faz um longo dicionário de anedotas realizado através de uma colagem de imagens. Se no início do filme o espectador se choca com as imagens explícitas, aqui são as guerras e as disputas de poder que confrontam o público. Podemos questionar o que é realmente chocante e quais violências foram naturalizadas pela sociedade. De forma irônica, o diretor aponta como a hipocrisia e violências morais, religiosas e políticas deveriam ser consideradas mais obscenas que os comportamentos sexuais.

No ato final, acontece o julgamento de Emi na escola em que trabalha. Como em grande parte das discussões moralistas, as crianças são o alvo de preocupação, e a sexualidade da professora é condenada em nome da proteção das crianças. Apesar de recriminarem o comportamento da protagonista, todos aqueles presentes na reunião assistiram o vídeo, o que é útil para tecer um comentário sobre como os comportamentos conservadores são completamente hipócritas. Os pais dos alunos, se preocupam excessivamente com a exposição das crianças às imagens sexualmente explicitas sem perceberem que, ao compartilhar o vídeo de Emi, eles estão ignorando o consentimento da professora.

Má sorte no sexo ou pornô acidental constrói uma crítica sobre a forma como a sociedade lida com o sexo de maneira criativa. Através de um humor ácido, o diretor romeno expõe as contradições de uma sociedade conservadora que condena a exposição de um ato sexual completamente natural, sem perceber que seus comentários misóginos e racista são a verdadeira obscenidade. O filme, consciente da forma reacionária que a nossa cultura lida com a sexualidade, utiliza imagens sexualmente explicitas sem nenhum pudor, para chocar o espectador e fazer com que ele reflita sobre seus próprios preconceitos morais. Contudo, os discursos sexuais apresentados são bem normativos para uma obra que pretende escandalizar. Os questionamentos de Radu Jude são bem claros desde o início do filme e não são bem desenvolvidos ao longo da trama, o que faz com que a obra se torne um pouco repetitiva e pretenciosa.

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