O filme Amores de Rua (1994), dirigido por Eunice Gutman, é um dos seis curtas-metragens em exibição na mostra Mulheres: uma outra história, organizada pela revista Another Gaze. O nome da mostra faz referência ao filme Mulheres: uma outra história (1988), também de Gutman, disponível no site. A revista sobre cinema Another Gaze é especializada em temas feministas e criou a plataforma de streaming Another Screen para exibir filmes de difícil acesso que possuem um viés feminista. Neste momento, o site conta com duas mostras simultâneas: a já citada Mulheres: uma outra história, disponível até o dia 24 de maio de 2022 e a A moving X-ray, em que estão disponíveis sete filmes da cineasta inglesa Sandra Lahire, disponível até 15 de junho de 2022. As duas mostras, gratuitas e online, contam com críticas, textos e entrevistas com as realizadoras. Uma das entrevistas é com a diretora Eunice Gutman.
A mostra Mulheres: uma outra história destaca contribuições de documentaristas brasileiras que realizaram curtas-metragens sobre lutas trabalhistas de mulheres em diversos contextos. A posição da Another Gaze de incluir no programa um filme como Amores de Rua, que tem como temática a prostituição, é fundamental como parte da política feminista que reconhece o trabalho sexual como trabalho e as trabalhadoras sexuais como agentes de uma luta coletiva emancipatória. Se as mulheres foram excluídas da História, as trabalhadoras sexuais, mesmo dentro dos movimentos feministas, possuem suas narrativas silenciadas da própria história das mulheres da qual deveriam fazer parte. No livro Putafeminismo (2018), de Monique Prada, a autora afirma que o feminismo hegemônico não considera o movimento das prostitutas, que lutam por direitos humanos e trabalhistas, como parte do feminismo. Para a putativista, em muitos casos o feminino chega ao puteiro de forma moralista, salvacionista e em alguns casos, através de discursos de ódio produzidos por mulheres que se consideram feministas.
Nos primeiros minutos de Amores de Rua, as trabalhadoras sexuais são filmadas de longe, em ambientes noturnos. Estas imagens, favorecem o imaginário que a sociedade possui das prostitutas como figuras vulneráveis e solitárias que só existem de noite. Contudo, esses estereótipos são destruídos ao longo do documentário através dos discursos produzidos pelas próprias prostitutas. O documentário de 28 minutos, entrevista algumas prostitutas e ativistas do Rio de Janeiro, dentre elas, Eurídice Coelho, presidente da Associação de Prostitutas do Rio de Janeiro, e Gabriela Leite, uma das organizadoras do I Encontro Nacional de Prostitutas, uma das fundadoras da Rede Brasileira de Prostitutas e uma das líderes do DAVIDA, uma ONG que defende os direitos das prostitutas. Todas estas organizações são espaços em que as trabalhadoras sexuais podem se comunicar e articular suas estratégias políticas. Um dos lemas do I Encontro Nacional de Prostitutas foi: “mulher da vida, é preciso falar”. A frase foi escolhida porque as prostitutas percebiam que suas falas não eram bem-vindas nos movimentos de esquerda e feministas. Era preciso criar um espaço em que elas pudessem falar sem tabu sobre seu trabalho, que é sempre alvo de violência do Estado e de feminismos salvacionistas. Por este motivo, é interessante pensar que no filme de Gutman, as personagens falam de forma despreocupada para a câmera. Além disso, a realizadora entrou em contado com líderes dos movimentos políticos organizados. Gabriela Leite e Eurídice Coelho são figuras centrais dos movimentos das prostitutas brasileiras.
Vale lembrar que no filme de Carole Roussopoulos, The Prostitutes of Lyon Speak (1975), o ato de falar faz parte do título do filme, evidenciando a importância das trabalhadoras sexuais falarem e serem ouvidas, ocuparem os espaços públicos de forma política e decidirem coletivamente enquanto movimento quais são as demandas relevantes para elas. O filme de Roussopoulos documenta uma famosa manifestação que aconteceu em Lyon, na França, em que 150 trabalhadoras sexuais ocuparam uma Igreja como forma de protesto contra a violência policial que elas sofriam. Tanto no filme de Gutman, quanto no de Roussopoulos, as personagens falam diante da câmera. Considerando que trabalhadoras sexuais são um grupo excluído dentro dos movimentos políticos e da sociedade de forma geral, esta opção de filmagem é interessante porque convida o espectador, talvez pela primeira vez na vida, a ouvir o que as prostitutas têm a falar sobre o seu próprio trabalho. Uma entrevistada de Amores de Rua relata que a sociedade as vê como monstros, nunca como pessoas. O ponto alto do documentário de Gutman está justamente no fato de desconstruir os imaginários putafóbicos que a sociedade construiu ao redor das prostitutas através dos testemunhos destas personagens.
Exemplos mais recentes no Brasil como os filmes mineiros Filhos da Puta (2020), do coletivo de trabalhadoras sexuais Rebu, e o Prostituição e Interseccionalidade: retrato das vozes de Guaiacurus (2021), da Associação de Prostitutas de Minas Gerais, também são filmes interessantes para pensar o trabalho sexual. As próprias trabalhadoras sexuais, antes, objetos de olhar, de pesquisa, de movimentos feministas, agora dirigem seus próprios documentários, utilizando as ferramentas cinematográficas para narrar as suas histórias. Nos filmes do coletivo REBU e da APROSMIG as próprias trabalhadoras sexuais definiram que discursos elas gostariam de incluir nos filmes e de que forma isso seria incluído, o que torna estes materiais mais enriquecedores do ponto de vista político do que Amores de Rua e The Prostitutes of Lyon Speak.
Além de Eurídice Coelho e Gabriela Leite, Amores de Rua conta com entrevistas de outras prostitutas, que não foram creditas. Não sei se foi uma opção para proteger a identidade das mulheres ou um descaso com as entrevistadas, que produzem questionamentos sobre sexualidade interessantíssimos. Uma das entrevistadas, por exemplo, conta que alguns de seus clientes gostam de vestir suas roupas de mulher e não existe nenhum problema com isso, é uma fantasia importante de ser realizada. Ela também afirma que não teria a liberdade sexual que deseja em um casamento, questionando os ideais monogâmicos e enfatizando que em sua vida como profissional do sexo existe espaço para o seu prazer sexual. Sua fala também mostra como o trabalho sexual é um espaço de transgressão dos modelos familiares, das relações sexuais e do trabalho formal. Através do trabalho sexual, Eunice Gutman expõe quais sexualidades são permitidas no sistema capitalista patriarcal e quais não são.
Isso não significa que todas as prostitutas concordem com isso. É interessante como o curta-metragem expõe o que as trabalhadoras sexuais pensam e sentem sobre o seu próprio trabalho através de perspectivas diferentes, este é um ponto positivo do filme, já que as trabalhadoras sexuais não são um grupo homogêneo. Como exemplo, outras entrevistadas afirmam que desejam mudar de profissão porque elas não se sentem seguras exercendo o trabalho sexual. Mesmo que existam problemas envolvidos na profissão, as entrevistadas não são filmadas como vítimas que precisam de salvação. No final do filme, Eurídice Coelho declara que não vai falar que é uma prostituta coitadinha, desconstruindo a ideia de que as trabalhadoras sexuais são pessoas alienadas e infelizes. Diferente dos momentos iniciais do curta, em que são apresentadas imagens noturnas de prostitutas solitárias na cidade, o filme termina com cenas diurnas, afinal, o trabalho sexual não é só realizado de noite, e com várias pessoas em quadro, onde vemos as prostituas rindo, limpando a cozinha e realizando outras atividades. Elas aparecem ao lado de colegas, de clientes e de pessoas que transitam pela cidade. Estas imagens finais são úteis para lembrar que as trabalhadoras sexuais fazem parte da sociedade e que o movimento das prostitutas é uma luta trabalhista coletiva. Elas estão unidas, não são figuras isoladas e vulneráveis.
Para Monique Prada, “a ideia de que nós, trabalhadoras sexuais, podemos nos sentir parte dessa luta [feminista], de que ela também é nossa, tem sido uma construção delicada e quase tímida. Mas muito poderosa: quando uma mulher se dá conta de que tem direitos, todas as mulheres ganham” (Prada, 2018, p.69). Ao incluir Amores de Rua em seu streaming de filmes feministas, a Another Screen dá passos importantes para construir um feminismo inclusivo e que reconhece a importância da luta das trabalhadoras sexuais brasileiras na história das mulheres. Afinal, no Brasil, as prostitutas lutam por direitos trabalhistas de forma organizada desde os anos 1980.
Referências bibliográficas:
PRADA, Monique. Putafeminista. São Paulo: Veneta. 2018.