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Começo a minha crítica ponderando se “A Artista e o Ladrão” não é um nome que engana ao espectador (e esta, é claro, é sua intenção). Não que o filme não seja bem literal quanto aos seus protagonistas, mas porque tal título leva a audiência a fazer algumas premissas e estipulações falsas. Afinal, a alcunha de “artista” traz uma série de julgamentos e valores. “Ladrão”, então, nem se fala. No entanto, tais alcunhas caem por terra em pouquíssimo tempo. A “Artista” também é imoral, o “Ladrão”, também é um apaixonado por artes, a “Artista” também tem um passado de violência, o “Ladrão”, também tem um passado artístico.

Além disso, o título “A Artista e o Ladrão” também omite um terceiro personagem – o documentarista. E se isso parece lugar comum quando falamos de documentários e as intencionalidades por trás da câmera, aqui o faço por um motivo em particular. O diretor do filme, Benjamin Ree, por um motivo diferente não escolheu contar uma história – a história resolveu se contar para ele e, mais do que isso, fico me perguntando se esta história não aconteceu somente porque ele estava lá: gravando. Digo isso pois a história é digna da ficção. Uma pintora, Barbora, tem duas de suas artes roubadas de uma galeria por dois homens mascaradas. É nesse momento que Ree surge – gravando com Barbora sobre o ocorrido. Porém, em um lance do destino, ele acaba pegando o exato momento em que Barbora descobre que um dos ladrões foram presos. A partir daí, Ree acompanha a artista no tribunal, na esperança de encontrar seus quadros roubados. Porém, ao invés de quadros, ele testemunha algo completamente diferente: uma amizade surgir entre Barbora e o ladrão, Karl.

É nesse momento que me pergunto se Barbora teria se colocando em uma situação de se abrir para Karl se não fosse pela existência de uma câmera, ali, a gravando. No entanto, isto pouco importa. Afinal, mesmo se houvesse algum tipo de premeditação na relação que Barbora busca desenvolver com Karl, nada tiraria o brilho a figura fascinante que é o ladrão de quadros. Karl, por vezes, parece uma caricatura. Sua casa repleta de quadros (tanto réplicas quanto originais) poderia facilmente ser cenário de um filme. A isso, soma-se sua paixão pela velocidade, seu comportamento autodestrutivo, e o seu bom humor contagiante. Uma figura complexa que demonstra o quão superficial é a alcunha de “ladrão”.

Complexa, também, é Barbora. Se em um primeiro momento nos deixamos levar pela perspectiva de que ela é apenas uma talentosa pintora com bom coração, conforme vamos nos aprofundando em sua amizade com Karl começamos a perceber algumas questões que revelam um pouco da sua história. Entre princípios de obsessão e um passado marcado por violência, Barbora nos leva a todo momento questionar sobre os limites de sua relação. Nesse sentido, a última cena de “A Artista e o Ladrão” é certamente impactante e define o principal conflito abordado no documentário. Mas não estraguemos a experiência para quem ainda não assistiu.

Falando em cenas, é preciso comentar a montagem não linear do filme. Entre idas e voltas, fatos e versões, o filme é competente em misturar passado e presente, verdades e mentiras, a ponto de coloca-las em segundo plano. Tal qual as alcunhas de “artista” ou “ladrão”, a complexidade daqueles eventos e daqueles personagens vai muito além que definições simplistas. No entanto, vale ponderar que o filme peca um pouco em tentar fazer “plot twists”, omitindo informações para revela-las depois. Eles não são tão necessários assim – a história, afinal, já é interessante demais e tudo soa como subterfúgios exagerados.

Evitando dar mais pistas sobre os protagonistas, é interessante também comentar acerca de algumas peculiaridades do filme. Particularmente chocante é testemunhar um pouco do sistema prisional norueguês, com quartos limpos, bem iluminados e que mais parecem um cômodo de um honesto hotel três estrelas. O país, é claro, se apresenta como modelo social ao mesmo tempo que tem em Karl e Barbora duas figuras que desafiam essa própria concepção. Enquanto Karl é um criminoso de passado trágico, Barbora é uma artista extremamente talentosa que cada vez mais se endivida. Os dois, em diferentes escalas, sofrem para se sustentar dentro daquele sistema.

E é aqui que quero voltar ao meu ponto do começo: o título. Se o nome do filme parece indicar que veremos uma obra onde um ladrão é reabilitado através da pintura por uma artista de bom coração, não se engane. Também não é o filme onde um ladrão ensina para uma renomada pintora sobre o “mundo para além das telas”. Para muito além dos clichês, “A Artista e o Ladrão” é um filme sobre obsessão, dependência, coincidência e casualidade. Um trabalho que olha para dentro de seus personagens e mostra a complexidade humana para além de seus atos – sem ter medo do que isso possa acarretar. Para o bem e para o mal.

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