Por Victória de Castro Nunes
Crítica originalmente feita por Victoria quanto aluna de Cinema e Audiovisual da UFF para a disciplina de Estágio Docência II, do professor Gabriel Linhares Falcão.
Parece redundante fazer elogios a Kenji Mizoguchi, considerado por muitos o ‘Maior cineasta que já viveu’, mas me parece também que há sempre algo a se falar sobre ele e sobre sua importância. Todos aqueles agraciados pela dádiva da visão podem ver, e podemos ver qualquer coisa, mas quando vemos algo que nos atravessa e que nos muda, isso não passa despercebido. Como Jean Douchet diz em sua entrevista sobre o cineasta: “É um cinema que obriga o espectador a exercer uma função crítica. Não para criticar estupidamente, mas para ver a verdade das coisas.”. Quero focar no “ver a verdade das coisas”, o que seria uma verdade filmada, encenada, atuada e cuidadosamente organizada? Mizoguchi tinha um talento admirável de filmar sentimentos humanos reais, de forma muito sensível e bela, mas com a consciência de quem conhece as dores do mundo.
Mizoguchi filma sonhos e filma delírios que parecem operar na esfera do real, do palpável e sincero. Em seu filme Contos da Lua Vaga o personagem de Masayuki Mori, Genjuro, está no vilarejo e encontra uma loja onde vende-se kimonos. Chegando lá, nós vemos um plano e contra-plano de Genjuro olhando para as roupas, uma música etérea começa a tocar, podemos perceber claramente uma mudança de clima no filme (se não me engano, até então não havia tido algum plano ponto de vista no filme e arrisco dizer que não há outros até o fim) mas ao mesmo tempo, uma magia que tem uma fisicalidade humana. Vemos sua esposa, Miyagi, interpretada por Kinuyo Tanaka entrar em cena (sabemos que ela está longe dele, e que o encontro de ambos seria impossível) e a música tocando ao fundo.
Na maioria das vezes, será ineficiente tentar descrever sentimentos, sentimentos que temos quando vemos coisas, e nossa visão é algo particular, e com particular quero dizer que individualmente você tem olhos, e o que você vê só você vê, mas o jeito que Mizoguchi filma o impossível, é algo alcançável para todo mundo ver e sentir. E essa ação, mesmo sendo um sonho e algo fora da realidade, é tão concreta e tangível para nós como aqueles kimonos são para Genjuro. Poderia dizer o mesmo sobre a cena de Sansho onde Anju e Zushio ouvem os cantos sofridos e dolorosos de sua mãe, que eles sabem que objetivamente não está perto deles.
Se Yasujiro Ozu pode ser dito como o cineasta da contemplação – seus planos de espaços vazios, silenciosos e sem a presença do corpo humano – diria que Mizoguchi é o da ação. Eduardo Savella diz no seu texto sobre Intendente Sansho: “Além disso, o movimento da câmera só é motivado pelo movimento dos homens e das mulheres: a câmera como que está magnetizada pelo movimento humano, que se desenrola no mundo, e esse mundo floresce: floresce numa aura de sonho, aura, bem entendido, que deve sua revelação somente ao olhar do cineasta.” Em filmes como Sansho, Contos da Lua Vaga, Os Amantes Crucificados e Rua da Vergonha, seus personagens estão sempre trabalhando, indo e vindo, se desencontrando ou fugindo. Pouco temos de planos vazios, paisagens, ou imagens sem corpos, corpos estão presentes e corpos estão vivendo e sofrendo dores e pesos da existência humana. Jean Douchet ainda em sua entrevista sobre Rua da Vergonha: “É um filme clássico, mas que, de uma certa forma, abre para a modernidade. Podia ser um filme demonstrativo — o que se faz de pior em cinema — porque trata-se disso, mas não o é nem por um segundo. A sua demonstração resulta da ideia do olhar que ele nos impõe: um olhar que deve ser unicamente o da consciência, e não o do prazer admirativo e egoísta que assumimos à volta das coisas belas. Em Rua da Vergonha, precisamente, as coisas não são belas por si próprias, mas os indivíduos, esses, são belos. É isso que é magnífico”. Não há intenção de moralmente julgar os personagens por suas escolhas e seus erros, mas por sermos todos humanos, somos confrontados com esses atos falhos, nos enxergamos nos outros e temos espaço para fazermos nossas críticas, Mizoguchi não nos segura as mãos e nos leva a conclusões, estamos absortos pela grandiosidade da vida, onde qualquer ação e atitude é possível.
No ensaio “Mizoguchi Kenji”, Jean Douchet caracteriza o plano mizoguchiano como sempre “duplo”, onde dois mundos se conflitam: “um – o mundo objetivo – sempre procurando impor sua lei rígida e destruir toda a vida afetiva e espiritual; o outro – o mundo subjetivo – que deseja, ao contrário, preservar a qualidade interna da vida interior e, mais ainda, transformar a realidade em um universo ideal, sonhado, irreal.”[1]
Peguemos de exemplo o mundo externo apresentado em Os Amantes Crucificados: casais são crucificados se forem pegos em adultério, há uma procissão no meio da rua, os amantes são amarrados e acompanhados até a hora da sua execução, é um mundo extremamente punitivista, onde a morte é regra e lei.
O mundo externo dos filmes do cineasta será predominantemente cruel, opressivo, toda vida espiritual e emocional se encontra ameaçada, a dor de cada um dos personagens será contida, atingindo (a partir do melodrama) sempre um momento catártico de sua angústia. Em Rua da Vergonha, não há redenção para Mickey, Yumeko, Yasumi, Hanae e Yorie – as mulheres que protagonizam o filme, que são obrigadas a prostituir-se por diferentes circunstâncias.
Conforme o filme avança, qualquer ilusão de esperança para o futuro dessas mulheres e qualquer chance delas de serem totalmente livres irá ser destruído: Hanae se prostitui para sustentar o filho pequeno e o marido tuberculoso desempregado, tomando empréstimos das colegas para poder pagar o aluguel da casa e dar de comer à sua família, as dívidas sempre aumentarão, e não há qualquer possibilidade de Hanae parar de se prostituir. É algo que Yorie aprenderá, ao sair da prostituição para viver com o marido pobre: ou se contenta e se acomoda com o luxo que o dinheiro da prostituição traz ou sofre com a miséria da pobreza. A família de Mickey e Yumeko nunca mostrará qualquer apoio para elas, por conta de seu trabalho “vergonhoso”, a resposta será a indiferença ou o desprezo, Mickey nem é vista como uma filha para o pai, apenas um empecilho para o casamento do outro filho (que diferente da irmã, vive em condições mais “nobres”), o filho de Yumeko condenará a mãe (que aliás, se prostitui para garantir o sustento do mesmo), dizendo que nunca mais irá querer vê-la. Yasumi será a única entre as outras personagens que sairá da prostituição e terá sua própria loja, ao extorquir uma quantia de dinheiro considerável de um cliente, mas seu destino não é nem um pouco ovacionado, sabemos da humilhação que ela passou para conseguir o dinheiro, acabando por quase ser morta nas mãos de quem roubou.
Até o final do filme, os corpos dessas mulheres estão cada vez mais confinados, presas ao bordel em que trabalham, pela dificuldade financeira, pelas dívidas que não sanam, pelo desdém familiar, nunca sendo vistas como pessoas, mas como mercadoria do patrão – nós, os espectadores, somos os únicos que a vemos como humanas. Toda a dor das personagens permanecerá contida, peguemos o exemplo de Yumeko, que no final enlouquece pelo desprezo do filho, numa cena, quando ela está a caminho do manicômio, a câmera documenta tudo de longe, é a última vez que vemos a personagem em tela, não há planos fechados do seu rosto ou acenos excessivamente dramáticos de despedida para as suas colegas, apenas um corpo que se enclausura numa ambulância e vai embora. No dia seguinte, um novo dia de trabalho, todas já conformadas ou aceitas pela sua condição e pelo destino de Yumeko.
Toda dor e angústia que acompanhamos no filme só atingirá seu momento de catarse no final, quando uma menina (também obrigada se prostituir) se maquia para iniciar sua primeira noite, onde ela poderá cobrar mais caro do primeiro cliente, por ser virgem. O filme encerra com um plano fechado de seu rosto, que recua atrás da porta, com vergonha e medo do mundo, chamando desajeitadamente na porta do bordel homens para poderem violá-la. Nas palavras de Jean Douchet, a menina ao se maquiar abandona a sua beleza simples e natural, vira um objeto, uma aparência, o kimono que veste, e seu rosto maquiado enunciam sua “própria morte moral, emocional e espiritual”[2].
No final de Rua da Vergonha, o mundo exterior vence, encarcerando e asfixiando toda possibilidade afetiva e espiritual entre as personagens. Há a possibilidade do mundo interior dos personagens vencer?
Peguemos de exemplo o final de Os Amantes Crucificados, Osan e Mohei decidem serem crucificados juntos, ir de encontro com a morte, paradoxalmente, é a única saída para ambos estarem juntos, o filme termina com os amantes de mãos dadas e sorrindo de costas um para o outro.
Nas palavras de Jean Douchet: “(…) a beleza pura preenche a aspiração suprema de todos os personagens Mizoguchianos e aparece para eles como o refúgio final, e ainda mais como a única realidade verdadeira, a do mundo dos sonhos e da afetividade (…)”[3]. Talvez a palavra aqui não seja redenção para o destino de Osan e Mohei, mas sim, a palavra “eternidade”, ao serem crucificados juntos, os amantes decidem adentrar num mundo mais duradouro: a dos sentimentos eternos que nutrem um pelo outro.
A escolha do casal em morrer não os redime, o mundo que os perseguiu continuará caçando adúlteros e os crucificado em praça pública, não há possibilidade de revolução no mundo que oprime as personagens (vide a escravidão em Sansho, a prostituição e a exploração do corpo feminino em Rua da Vergonha, a guerra pode acabar em Contos da Lua Vaga, mas o espírito de Miyagi continuará assombrando a consciência de Genjuro, que a abandonou e a deixou para morrer), há apenas a possibilidade de edificar um mundo interior, afetivo, sonhado pelos personagens, como no final de Sansho, num ambiente dominado pela dor e pela morte, acontece o reencontro entre mãe e filho, e a partir de um único gesto de amor – um abraço – tudo se fecha, se eterniza, há a união das águas do mar (brilhando ao longe), e do céu com os corpos de Zushio e sua mãe na margem da praia. Num espaço dominado pela grandiosidade da vida e pelo sofrimento da morte, Mizoguchi nos arrebata para o mistério de sua arte, que tem, na medida certa, o gosto agridoce entre a beleza do sentimento humano e a dor iminente.
[1] – No original se lê: l’un – le monde objectif – cherchant toujours à imposer sa loi rigide et à détruire toute vie affective et spirituelle; l’autre – le monde subjectif – désirant au contraire préserver la qualité interne de la vie intérieure et plus encore transformer la réalité en un univers idéal, rêvé, irréel.
[2] – No original se lê: “(…) Ou encore le tout dernier plan de la Rue de la Honte. La très jeune fille envoyée comme servante dans la maison close est transformée, par la tenancière, en prostituée. On la farde donc. On masque sa beauté naturelle et simple sous celle des apparences. C’est sa propre mort morale, affective, spirituelle qu’elle appelle en faisant signe à l’horrible réalité qui l’environne.”
[3] – No original se lê: “(…) la pure beauté comble l’aspiration suprême de tous les personnages mizoguchiens et leur apparaît comme l’ultime refuge, et plus encore comme la seule véritable réalité, celle du monde du rêve et de l’affectivité (…)”