Por Pedro Tao

Crítica originalmente feita por Pedro quanto aluno de Cinema e Audiovisual da UFF para a disciplina de Estágio Docência II, do professor Gabriel Linhares Falcão.

No célebre texto de Jacques Rivette O Gênio de Howard Hawks, o diretor e crítico francês trata o cinema de Hawks como uma amálgama, ainda que respeitando uma distinção comédia/drama, os quase cinquenta anos de contribuição do americano são vistos quase que uma coisa só.

Isso porque nos filmes de Howard é sempre identificável uma figura masculina com algum tipo de poder ou posse, seja material ou intelectual (um PhD como em Levada da Breca ou um barco como Uma Aventura na Martinica) lidando com consequências lineares de ações nos quais estão envolvidos em maior ou menor grau. No caso de Scarface, filme de 1932, as duas características estão presentes: Tony Camonte, filho de italianos, ascende no mundo do crime e passa a tomar conta da distribuição de bebidas numa metrópole americana.

Narrativamente, é um filme sobre a escalada de Tony Camonte ao poder do submundo criminoso em Chicago. Mas o filme foi, também, um produto publicitário anti-gangsters, já que essa violência urbana atingia níveis até então não vistos pela sociedade americana. Por acompanhar de forma muito próxima Tony e seus atos, o filme acabou sofrendo com um tipo de censura do Código Hays, que pretendia conservar uma moralidade nas obras cinematográficas da época.

Arte é um reflexo do seu tempo. Scarface era uma espécie de aviso, tanto às autoridades quanto à população. Por isso fora imposto uma mensagem social completamente superficial que Hawks parece latentemente subverter. Rivette diz:

Hawks é o diretor da inteligência e da precisão, mas é também um maço de forças negras e fascinações estranhas; ele é um espírito teutônico, atraído por surtos de furor controlado que geram uma cadeia infinita de consequências. A existência de sua continuidade é a manifestação do Destino. Os heróis demonstram isso não tanto nos sentimentos, como nas ações, observadas por Hawks com meticulosidade e paixão. É as ações que ele filma, meditando sobre o poder autônomo da aparência.

Pensando na década de trinta e na censura imposta à indústria, a obra tem um objetivo extra-fílmico de condenar todas essas ações, mas estilizadas pelo diretor, assisti-lo hoje em dia a impressão é completamente distinta. Parece um filme completamente YOLO, a sigla em inglês que significa “você só vive uma vez”. Tony descumpre as ordens de seu chefe, tenta (e possui êxito) roubar sua mulher, ascende no mundo do crime, torna-se um conquistador violento de territórios e provém como em nenhum outro momento sua família teve acesso. Tudo isso sequencialmente, pois como Jacques aponta, tudo em Hawks é linear, contínuo.

Por isso, o único fim possível para Tony é a morte. A personagem é movida por uma pulsão de morte que é evidenciada por Hawks através de uma das inúmeras qualidades do cineasta, apontada no trecho destacado acima: o gesto. Howard se interessa muito por imagens fundamentais, que exprimem, em suas ações, toda sua potência. Sem rodeios, sem firulas. Quando Tony Camonte segura uma metralhadora pela primeira vez, todo seu destino está traçado ali. Hawks nunca trai suas imagens. Do fascínio no olhar do gângster até seu derradeiro suspiro, estava premeditado. Era inexorável.

O que relaciona o desejo extra-fílmico da obra com sua mise-en-scene é o diretor propor a violência como uma chave desta ascensão criminosa. O que faz todo sentido com o cinema de Hawks, esse “surto de furor controlado que gera uma cadeia de consequências”. O antropólogo Michel Alcoforado, diz que as coisas luxuosas que esses possuem não funcionam exclusivamente como aparatos de status, mas como passaportes de entrada para lugares que não se sabia da existência. A violência hawkisiana é a única mediadora de conflitos do filme, é ela quem negocia o poder e a influência. Quando Johnny Lovo, o até então líder da gangue na qual Camonte era apenas um capanga, decide uma abordagem mais cadenciada, ou seja, recusa a violência, seu reinado sucumbe. É aí que Tony cresce, pois ele vê a violência como a chave de seu novo mundo e a violência vê nele sua capacidade de materialização. É o casamento perfeito entre o intangível e o físico, de forma que só um dos grandes mestres da sétima arte é capaz de fazer

Até a relação entre Tony e sua irmã é permeada por esses gestos violentos. Ele bate nela. Trata-a como sua posse (um ideal americano inegociável) e por isso incube a si um propósito de supostamente cuidar dela. Sua mãe, mais distante, sempre contrariando seus atos, mas não possui a potência física, a violência, que é a chave do filme, para confrontá-lo.

Scarface não é o filme que vem à cabeça quando se pensa em Howard Hawks, com certeza o filme é mais comentado quando se pensa no famosíssimo remake de Brian de Palma com Al Pacino no papel principal, mas isso não importa. Um marco social, um retrato do medo que o estado possuía no momento em que a obra era feita, visitá-lo nos dias atuais, depois da humanidade ter revisto e proposto novos valores, o filme ganha um novo significado. Não é uma insinuação de que o crime compensa, mas como o diretor deixa claro, em tudo na vida há ônus e bônus.

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