Por Caique Oliveira Miranda

Crítica originalmente feita por Caique quanto aluno de Cinema e Audiovisual da UFF para a disciplina de Estágio Docência II, do professor Gabriel Linhares Falcão.

Perguntado sobre seu tema, diretor e co-roteirista em Os olhos sem rosto, Georges Franju, disse que o mesmo se trata de um conto sobre angústia. Quando pensamos sobre como a imagem fala nesse filme, suscitamos de primeiro na memória os momentos de violência gráfica e psicológica que, no entanto, não é necessariamente o que os detalhes indicam.

Peça central da trama, temos o Dr. Génessier e sua filha Paulette, que sabemos estarem em busca de conquistas pessoais. O pai sempre é posto em cena com duas características marcantes de sua personalidade: a rigidez e a inexpressividade de sentimentos afetuosos. Um personagem que muito através de sua movimentação e trejeitos, também mérito da atuação potente de Pierre Brasseur, nos remete à uma figura insólita, dada sua ligação com Paulette. Em diálogos ao longo da história, ele evidencia sua busca por sucesso em transplantar um novo rosto para sua filha, retirados de jovens mulheres vítimas de sequestro. O mistério e dualidade de suas ações traçam umbeátrice altaribaa figura que permanece inalterada até o final.

Na primeira cena em que Paulette é mostrada, num diálogo entre os dois, ele argumenta para sua filha acreditar que o que ele faz, os meios justificados pelo resultado, gira em torno do seu amor paterno, seu desejo de trazer à Paulette a satisfação com a própria imagem. No entanto, primordial e oposta a esse diálogo, é sua chegada na casa e o caminho até o quarto da filha. Franju reserva tempo para a subida do doutor, pelos vários andares, numa escada circular. A todo momento, Génessier alterna entre parar seu movimento e olhar para cima, visando o quarto. É nessa subida de escadas que talvez mais reverbere a real motivação do doutor: ele acredita estar trabalhando na resolução de um milagre. Seu caminho até Paulette é de um esforço como se trilhasse um caminho até um posto divino ao qual ele se coloca. Uma subida ao recinto simbolicamente angelical de sua filha. Sua jornada significa mais para si mesmo do que para a moça com o rosto desfigurado.

Aqui o choque entre os arcos dramáticos dos dois protagonistas começa. Se Génessier é a todo momento uma figura inalterada, Paulette é o oposto, expressando delicadeza, angústia e conflito existencial. A maneira como o diretor a apresenta é a visão que a própria Paulette tem de si mesma: reclusa, infeliz e envergonhada com sua aparência. Seu figurino tem atenção especial para tecidos leves, esvoaçantes com seu caminhar, por vezes na tentativa de quase flutuar pelos ambientes. E ao contrário de seu pai, mesmo vestindo uma máscara, os olhos de Paulette recebem atenção especial da câmera, as únicas janelas que permitem ao expectador “enxergar” o que se passa emocionalmente com Paulette. Gotas delicadas, no entanto, carregadas de angonia, inquietude, transbordam da máscara. Uma atuação magnífica de Beátrice Altariba. Não há nada mais simbólico dentro do próprio filme, o mérito de traduzir a supressão do pai sobre a filha, que uma face rígida, fabricada, que suprime quase todas as indicações do estado emocional da menina. No entanto, são os detalhes que escapam através dos olhares de Paulette e que sublinham o poder da sutileza em seus olhos.

A jornada da moça é a verdadeira luta dessa história: desvencilhar-se das amarras, do controle e da posição de objeto que seu pai a coloca. Sobre isto, o artefato do canil da mansão ganha uma dimensão simbólica que traduz essa relação de objetificação entre pai e filha. Animais quase como que ratos de laboratório, enjaulados no subterrâneo da casa, com latidos de desespero abafados pela própria estrutura da construção. Génessier os visita apenas para alimentá-los ou incluir um novo cachorro ao confinamento. Ele os alimenta com esperança de libertação, do mesmo modo que alimenta as expectativas de Paulette de ganhar um novo rosto. Do lado da jovem, a todo momento que ela ouve os latidos abafados, se sensibiliza. Sua compaixão com os animais esbarra no medo e relutância em visitá-los, o que ela acaba fazendo, talvez na mesma frequência em que se permite olhar no espelho e reconhecer sua condição. A vindoura libertação dos cachorros no final do filme coincide, não por acaso, com Paulette recuando da esperança de um novo rosto. Ela esfaqueia a governanta da casa e abre o caminho para que os animais consumam Génessier, uma resposta na mesma medida às violências praticadas pelo pai.

Georges Franju articula esse enredo a partir daquilo que ele acredita: angústia. Mais que uma história de terror, o sentimento defendido pelo diretor é o que move e dá sentido às ações em Os olhos sem rosto. Olhar através dessa perspectiva não deixa de reconhecer os elementos de gênero presentes e que influenciaram tanto outros filmes que vieram depois, na verdade, os potencializa. Kiarostami fala, numa entrevista em 1997, algo que para mim exemplifica o tipo de filmes ao qual esse se enquadra: “Prefiro os filmes que fazem o público dormir no cinema. Acho que esses filmes são gentis o suficiente para permitir que você tire uma soneca e não o incomode quando você sai do cinema. Alguns filmes me fizeram cochilar no cinema, mas os mesmos filmes me fizeram ficar acordado à noite, acordar pensando neles pela manhã e ficar pensando neles por semanas”. Importante frisar que ele disse isso em contraponto a filmes que tratem o espectador com hostilidade e agressividade.

É aqui que o filme de Franju se destaca entre os contos de horror ao nos contar uma história violenta, através da sutileza e delicadeza.

 

 

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