Por Caique Oliveira Miranda

Crítica originalmente feita por Caique quanto aluno de Cinema e Audiovisual da UFF para a disciplina de Estágio Docência II, do professor Gabriel Linhares Falcão.

Blow Out

A premissa de Um Tiro na Noite é simples. Jack, um sonoplasta que trabalha em filmes B, deve captar sons para o seu próximo trabalho. Dentre esses sons, o de ambientação do vento e o grito verossimilhante de uma jovem prestes a ser assassinada no melhor estilo Psicose. Ele escolhe a noite para realiza a tarefa. Enquanto aponta seu microfone direcional, captando os mais diversos sons num parque da cidade, Jack ouve um carro atravessando a escuridão, um tiro, um pneu estourado esvaziando e a queda do veículo no lago ao centro do parque. Nosso protagonista então corre sem pensar duas vezes e se atira nas águas turvas e escuras para salvar Sally, com quem dividirá o resto do filme a busca por resolução de um crime que acabara de presenciar.

Esse filme de investigação escrito e dirigido por De Palma manuseia o uso de som e imagem como raríssimos filmes já o fizeram. Sua intenção aqui é mais que explícita ao organizar elementos dramáticos, narrativas e histórias em função de duas coisas: imagem e som. O tema central das obras de De Palma sempre passou pela experimentação e jogo com as possibilidades da mídia, dito, o cinema. Em Dublê de Corpo é o direcionamento do olhar, do foco, que é posto em discussão e de certa forma move o roteiro. Em Scarface, que outra maneira traduzir o que é Tony Montana, senão com cenas cruas, de escalada violenta que acenam para a jornada do gângster. Em Um tiro na noite não é diferente e vai além, é onde o cineasta tão injustiçado chegou mais perto da sua forma, do seu conteúdo, articulados de tal maneira que percebemos o total controle de De Palma sobre o que seu filme mostra e projeta nos ouvidos do espectador.

A própria origem do crime e a maneira como ele é acreditado pelas pessoas, nos invoca a máxima que defende a necessidade mútua da relação entre som e imagem. Quando Jack revela seu testemunho auditivo e ocular (embora este último não vale de nada para a trama) para a polícia, ele carrega consigo não somente a presença na cena do crime, mas também a dimensão dos detalhes do ocorrido e a expertise para saber processá-los. De Palma é imageticamente didático, sempre nos apresentando como o filme e o universo contido em seu interior operam, antes de trazer o plot em si.

Enquanto os equipamentos de Jack captam os detalhes, ele os interpreta como uma extensão de seu trabalho no cinema, porém que de nada surte efeito na polícia, que está mais focada em enganar a si mesma. Da mesma maneira que os sons de Jack não montam a cena completa de assassinato, as fotos tiradas por Karp na mesma noite, local e direção, somente alcançam os noticiários e revistas por conta da necessidade da sociedade em consumir conteúdo sensacionalista e imagens de violência. Estas, por sua vez não explicam o crime, apenas o revelam às pessoas, uma maneira de operar que todos conhecemos bem quando assistimos qualquer tipo de noticiário, seja televisivo ou não. A jornada do protagonista então fica clara: unir os fragmentos de som e imagem, unir seus esforços de sonoplasta aos de Sally, tratadora da imagem através do ofício da maquiagem, para solucionar o crime e salvar suas próprias vidas.

Muito se fala sobre as cenas dentro do filme que falam por si só. Emblemático o momento que Jack entra em seu laboratório de som para atrelar sua pista de som às fotos em sequência publicadas nos jornais. Nada é dito na cena, nenhuma dúvida é deixada. O cinema precisa somente de som e imagem, tal qual duas partículas elementares que formam átomos, o material base para composição do nosso universo. Jack minuciosamente trilha o processo de sincronização de imagem e som com equipamentos analógicos, outrora meio único de produção de filmes e que jamais perderá seu brilho e magia.

De Palma trabalha apenas com som e imagem a cena em que Jack, trabalha som e imagem do assassinato. Já vimos o protagonista passando por esses processos em momentos anteriores da história, lidando com cada elemento separadamente, mas agora, é o filme sendo feito diante de nossos olhos. Não é uma cena sobre as habilidades do diretor em filmar detalhes e montá-los de forma agradável, é uma conversa com o próprio cinema que discute, que articula, que mostra, que ouve, que une personagem e espectador, e os bota audiovisualmente na mesma posição. Não há necessidade de empatia com Jack dentro da cena em específico, apenas nos projetamos nele inconscientemente e absorvemos através de nossos sentidos a informação, não sobre o crime, mas sim sobre cinema.

Brian De Palma e Jack a todo momento se propõem em serem guiados pelos sons, a imagem mais que suscita isso. Há uma fragmentação dela em diversos momentos, que guiam e apontam o centro da atenção dentro de cena. Personagens em primeiro plano que ouvem conversas em segundo plano, sem necessariamente olharem na mesma direção; Jack buscando aportes visuais na sequência em que Sally é sequestrada pelo assassino enquanto está grampeada, o que força o protagonista a buscar indicações para os olhos enquanto ouve as pistas faladas no grampo. De Palma não precisaria dizer uma só palavra sobre seu melhor filme, está a todo momento tratando forma e conteúdo. Lhe interessa o jogo de fragmentar, apresentar e recompor os elementos, um processo de construção. Há também um interesse no real e no ficcional, a linha turva que os separa. O crédito da verdade é atrelado ao aporte visual, deixando para o som apenas o papel de história, semelhantemente às lendas que ouvimos dos antigos, histórias passadas que exigem a fé daqueles que escutam.

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