Gênero.
Quando falamos de gênero no cinema precisamos sempre especificar qual o significado que estamos querendo empregar: estamos nos referindo à uma categoria social ou uma categoria cinematográfica? Tais termos guardam inúmeras particularidades, mas para ambos existe um conceito que o ronda de forma quase fantasmagórica.
A expectativa.
Quando discutimos sobre papéis de gênero, por exemplo, estamos falando de expectativas de um ou grupo social sobre a performance e comportamento de seus indivíduos a partir de certas características. Por exemplo, na sociedade patriarcal ocidental, a ideia de ser mulher foi associada à uma série de regulamentações sobre o próprio corpo – algo que impacta desde políticas públicas (como a proibição do aborto) até atos corriqueiros (como o constrangimento de se amamentar em público). Em sua faceta mais fascista, tal expectativa sobre o que uma mulher “pode ou não pode fazer” é associada à aniquilação (figurada ou literal) de tudo que subverta tais expectativas. Mulheres insubmissas, por exemplo, eram chamadas de bruxas, histéricas, loucas, e eram imoladas, espancadas, estupradas, eletrocutadas ou trancafiadas por conta disso.
Já quando falamos de gênero cinematográfico, trabalhamos com a ideia de um “horizonte de expectativas”. Ou seja, quando vamos ao cinema ver um filme de comédia, esperamos rir, quando vamos ver um filme de terror, esperamos ficar assustados, e por aí vai. Partindo desta perspectiva o gênero cinematográfico parece ser um emprego bem mais lúdico da palavra “gênero” do que o gênero social, sendo suas expectativas também “bem menos nocivas”. No entanto, ambos os conceitos de gênero guardam questões que se entrelaçam profundamente.
Isso porque alguns gêneros cinematográficos são associados à gêneros sociais.
Por exemplo, o slasher, um dos subgêneros mais influentes da década de 1980, era marcado por duas constantes – uma mulher como protagonista (que ganhou a alcunha de Final Girl) e um vilão masculino. Mas não era apenas isso: a heroína precisava ostentar atributos um tanto quanto específicos: ser jovem, seguir padrões hegemônicos de beleza, não usar drogas recreativas e ser virgem. A estudiosa mais influente do slasher, Carol J. Clover, inclusive vai partir da teoria feminista para teorizar acerca de conceitos como voyeurização, sadismo, masoquismo, empatia, alteridade, misoginia…
Outro gênero cinematográfico historicamente vinculado ao gênero social é o faroeste. Ao contrário do slasher, esse, por sua vez, é inerentemente protagonizado por homens. Mesmo nas pouquíssimas vezes em que isto é subvertido – como no remake de Bravura Indômita, as convenções do gênero e da indústria fazem-se presentes. No caso, ao indicar Hailee Steinfeld (a protagonista da obra) ao Oscar de atriz coadjuvante e Jeff Bridges como ator principal, em uma daquelas pataquadas clássicas da premiação
É nesse campo amplo da palavra gênero que Ataque dos Cães se encontra. O filme da Netflix se debruça sobre esse mundo inerentemente masculino do faroeste, para discutir justamente os tipos e performatividades da masculinidade sob uma perspectiva moderna e feminina. A obra, afinal, é dirigida por Jane Campion, segunda mulher na história a ser indicada à um Oscar de direção – por O Piano (que lhe rendeu a estatueta de roteiro). E se no filme de 1993 ela faz um estudo sobre as condições da mulher em uma sociedade machista, aqui, ela estende essa discussão sobre as condições do homem nesta mesma sociedade. Assim, ao invés de se submeter aos clichês do gênero, ela o utiliza para fazer uma profunda tese sobre a masculinidade.
Neste sentido, vale ressaltar que Jane Campion é uma das favoritas ao principal prêmio da indústria cinematográfica estadunidense, justamente por trazer toda uma sofisticação e sutileza em sua direção que é essencial para o funcionamento da trama. Assim, por mais que a obra se debruce sobre um personagem que é o “típico Cowboy”: robusto, rude e extremamente físico, Campion jamais o restringe a esse único retrato, adicionando assim múltiplas camadas de caracterização.
Isto, por sua vez, se estende para todos os aspectos de Ataque dos Cães: absolutamente nenhuma de suas cenas guarda apenas um significado ou consequência narrativa. Pelo contrário, por baixo de seu ritmo mais comedido (que pode fazer parecer com que “nada esteja acontecendo”), Campion esconde uma série de ações, intenções e significados – dando uma densidade ímpar ao filme. Por conta disso, recomendo que o filme seja assistido com outras pessoas, uma vez que múltiplas perspectivas ajudam a tirar o melhor proveito da riqueza textual da obra. Em Ataque dos Cães o simples fato de um personagem usar ou não usar luvas pode representar afeto, robusteza, enfrentamento, subordinação… E pode ser tão imperativo no destino de seus personagens quanto um revólver (elemento semântico tão vinculado ao faroeste e que aqui mal tem a necessidade de aparecer).
Nada seria possível, no entanto, se também não fosse acompanhado pela força de seu elenco. É impossível não falar sobre a atuação de Benedict Cumberbatch, que consegue entregar um cowboy durão cuja complexidade poderia ficar escondida diante do clichê do cowboy. Assim, por trás das poucas palavras e discurso grosseiro, seu Phil esconde as frustrações de ser preterido pelos pais (pertencentes à uma decadente aristocracia rural) por conta de seu jeito pouco sofisticado, mesmo sendo o intelectual e acadêmico da família. Ao mesmo tempo, sua performatividade áspera é essencial para que ele consiga se colocar em uma posição de comando e de respeito frente aos seus funcionários, uma vez que ele precisa conviver com o segredo quanto sua sexualidade.
Seu contraponto é o jovem Peter, interpretado de forma igualmente excepcional por Kodi Smit-McPhee. O ator nunca deixa com que Peter seja definido por apenas uma característica, unindo ao mesmo tempo sensibilidade e frieza, pragmatismo e afetividade, sempre de forma orgânica. É claro que o próprio roteiro (e a direção de Campion) dá substrato para isso, como por exemplo ao demonstrar a relação do personagem com os coelhos que aparecem nas imediações. E são nos embates com Phil, repletos de ódio, admiração e desejo, que a complexidade destes dois personagens ficam ainda mais afloradas. Não existe sequer uma interação entre ambos que fique apenas na superfície, abrindo uma complexa discussão sobre o que são (e o que podem ser) estas diferentes masculinidades. Nesse sentido, a ambientação do filme em meados da década de 1920, já no fim da “Era dos Cowboys”, é certeira para provocar esse sentimento de mudança e choque geracional.
Também seria uma injustiça não citar as intepretações de Kirsten Dunst e Jesse Plemons, que fogem do estereótipo do casal apaixonado ao trazer à tona uma série de contradições e dúvidas sobre o seu relacionamento. Então se o George (irmão de Phil) de Plemons se demonstra solitário e sensível, sua gana destrambelhada em tentar se mostrar parte da aristocracia rural, faz com que lancemos algumas perguntas sobre as reais intenções de seu casamento. Por outro lado, a Rose de Kirsten Dunst jamais se limita à uma única definição, trazendo para composição não só os fantasmas do passado (aqui materializados no alcoolismo), como também uma variação entre momentos de maior insegurança (como aqueles envolvendo o piano) e aqueles onde expõe seu caráter mais belicista.
Assim, o maior trunfo da direção e do roteiro de Ataque dos Cães, não é apenas construir na decadente mansão rural uma arena em que seus quatro protagonistas estejam em constante conflito, mas tingi-los simultaneamente como frágeis e perigosos, cada um de sua própria maneira. De tal maneira, sempre existe um grau de incerteza quando vemos os personagens se esbarrarem nos diferentes ambientes (seja na sala de estar, no rancho ou no curral) – já que nunca saberemos o quanto cada um deles sairá ferido daquele encontro. Seja por conta de uma música, pela forma de se vestir, por um pedaço de couro ou pela falta de banho, todos aqueles personagens encontram formas efetivas de machucar uns aos outros.
Por fim, impossível não comentar da estrutura narrativa, cuidadosamente pensada para subverter nossas expectativas quanto gênero e quanto ao desfecho da própria trama. Ao construir sua primeira metade a partir do romance entre Rose e George, o filme nos leva a crer que vai dedicar toda sua construção às dificuldades de relação entre Phil e sua nova cunhada. Isto, no entanto, é eclipsado na segunda metade do filme, com a chegada de Peter (filho de Rose), que cria suas próprias complicações com Phil e com sua mãe (e aqui é bem interessante como a saída temporária de George da trama, serve para materializar a substituição afetiva que Phil tem com Peter). No entanto, quando esperamos que o filme se torne apenas sobre Phil e Peter, a obra puxa nosso tapete novamente e nos lembra que relações humanas são regidas por muito mais complexidades.
De forma geral, é um exercício complexo definir se Ataque dos Cães é um faroeste, um romance, um drama ou um suspense, justamente por ser os quatro ao mesmo tempo. Essa complexidade genérica que Campion trouxe à uns gêneros historicamente marcados por obras tão rasas e repetitivas – o que o levou inclusive a ser definido no Brasil pela alcunha de “filmes de Bang Bang” – é extremamente bem vinda. É óbvio que não podemos ignorar a história de um gênero que teve diretores como John Ford e Sérgio Leone em seu panteão, mas também é inegável que sua estrutura formulaica foi responsável pela sua decadência. É nesse sentido que novos corpos (como os protagonistas LGBTQIA+) e novas perspectivas podem ser o ar que o gênero precisa para ser revigorado, trazendo complexidades e sutilezas que foram alijadas da história do faroeste (e também de toda indústria Hollywoodiana).
Ataque dos Cães é um dos grandes favoritos ao Oscar desse ano e não é por menos. Desde o excelente Roma o streaming vem mostrando o poder de bancar produções aclamadas criticamente e de grande relevância cinematográfica, como foi o caso também de O Som do Silêncio e O Irlandês. Ataques dos Cães é um novo capítulo dessa história. Se isso vai ser o suficiente para vermos o primeiro Oscar de melhor filme ser dado à uma obra de streaming, ainda nos resta ver. Mas não importa. Tal qual a obra de Campion demonstra, as mudanças são irrefreáveis.