Filme disponível na Netflix.

Antes de mais nada é essencial fazer uma pontuação: me trato de um crítico homem falando de um filme essencialmente feminino. Não falo disso quanto somente ao gênero de sua diretora, a estreante na função Maggie Gyllenhaal, de suas protagonistas ou da autora da obra original (a escritora Elena Ferrante) mas de seus temas. A obra é um estudo sobre o excesso de responsabilidades jogadas sobre a mulher dentro do que uma sociedade patriarcal espera da maternidade e as dificuldades e coragem que exigem para se desprender desse rótulo. Logo, fica evidente que jamais conseguirei acessar certos níveis de sensibilidade que outras espectadoras poderão fazê-la. Por isso, me debruçarei principalmente sobre outros aspectos técnicos e narrativos do filme.

A Filha Perdida é um drama intimista que se passa em uma pequena cidade grega. Leda (vivida por Olivia Colman) é uma turista que em meio aos seus dias contemplativos, é acometida por lembranças do passado enquanto vislumbra ao longe a relação de Nina, uma jovem mãe (Dakota Johson), com sua filha. Por conta dessa premissa, a obra acaba remetendo de certa forma o clássico de Luchino Visconti, Morte em Veneza. No entanto, no lugar do desejo e contemplação que Gustav sente por Tadzio, aqui vemos o espelhamento e a empatia de Leda por Nina.

O sumiço temporário da filha de Nina é o gatilho para acionar diversas lembranças de Leda sobre seu passado. Estruturalmente, é a partir desse momento que começamos a ser apresentados a flashbacks que contam um pouco mais sobre a juventude da protagonista. A jovem Leda (interpretada por Jessie Buckley) é mostrada como uma estudiosa que se viu obrigada a abdicar de sua carreira acadêmica por conta da maternidade e em prol da carreira de seu próprio marido. Assim, enquanto vemos Leda, no presente, testemunhar as dificuldades passadas por Nina em cuidar de sua filha, também acompanhamos a sua decisão no passado, de ir viver sua própria vida longe das filhas por três anos, deixando-as para serem criadas pelo pai.

Por conta dessa estrutura, a obra tem algumas complicações narrativas bastante exacerbadas. Uma delas é a dificuldade inicial de se compreender a personalidade de Leda – nos deixando especular sobre os motivos de sua melancolia, de seu comportamento assustado e de sua solidão. Se parte destes questionamentos são satisfatoriamente respondidos no decorrer da obra, outros apenas nos distanciam da personagem, que em nenhum momento é construída como uma figura carismática. Inclusive, a excessiva recusa da protagonista em se aprofundar em interações com outros moradores ou visitantes da Ilha, dificulta que nós, quanto audiência, construamos vínculos mais profundos com a mesma, uma vez que ela parece apenas reagir ao seu entorno. Até mesmo seu clímax advém de uma ação exógena – que mobiliza reações da personagem sobre si e sobre seus sentimentos.

Falando em simbolismo, uma outra questão narrativa advém justamente de seu principal elemento simbólico: a boneca da filha de Nina. Chega a ser (involuntariamente) cômica a quantidade de vezes que a boneca perambula pelo quarto da pousada de Leda – sendo jogada de um lado para outra pela protagonista, conforme sua situação emocional. Além de cansativo, o (extremo) didatismo do elemento parece bastante deslocado em um filme cujo roteiro busca trabalhar de forma sofisticada com um assunto extremamente sensível. Essas aparições poderiam se dar de maneira mais sutil, pois a impressão que as repetidas interações entre Leda e a boneca passam é a de que, se não fosse por uma atuação do nível de Olivia Colman, tais cenas cairiam no ridículo.

Aproveitando para falar de atuação, é inegável a potência de Colman. Detentora de um Oscar (pelo maravilhoso A Favorita) e um Emmy (pela sua elogiadíssima atuação em The Crown), a atriz encontra não só um grande tempo de tela para mostrar seu repertório – mas uma aliada na câmara de Gyllenhaal, que raramente abre mão de enquadrar o rosto e os maneirismos da atriz. Também vale fazer um elogio para atuação de Jessie Buckley, que vive a jovem Leda e cuja personagem carrega a carga dramática para que consigamos entendê-la no presente. No geral, as duas performances conseguem encontrar o equilíbrio em se mostrar ao mesmo tempo que se trata da mesma personagem, porém em dois momentos completamente divergentes (um enérgico e aventureiro, e o outro contemplativo e altivo).

São as duas atuações que sustentam o filme, uma vez que o roteiro opta por não se comprometer nos arcos narrativos dos outros moradores ou hóspedes da ilha. Isto, por sua vez, faz com que nos tornemos espectadores desinteressados pelas vidas dos mesmos. Se isto já parece particularmente problemático nas relações com Lyle (vivido por Ed Harris), talvez pior ainda seja com Nina – ao qual o distanciamento optado pelo roteiro e pela direção, a transformam mais em um “fantasma do passado” (em outras palavras, um instrumento do roteiro, usado para desenvolver a narrativa/um elemento temático) do que um personagem multidimensional. Isto fica ainda mais evidente em seu diálogo final com Leda, cujas suas reações drásticas não conseguem ser explicadas se não por um alerta quanto a “periculosidade” de sua família (além do seu, novamente, óbvio simbolismo, se considerarmos o local onde Leda é ferida). Isto, por sua vez, vem de uma construção maior do próprio roteiro, que beira o preconceito étnico – uma vez que não nos é dado motivos dentro da obra para acreditarmos na periculosidade da família italiana, além de nos apresentar uma ação final de Nina, que não parece nem um pouco factível.

Como fica claro, A Filha Perdida não é um filme para todas as audiências: a obra é lenta e tem uma narrativa excessivamente descontínua e repetitiva. Sua existência na Netflix (e seu lançamento no final do ano) junto à Ataque dos Cães escancaram os objetivos da plataforma de streaming em conseguir indicações nas temporadas de premiação. Por mais que, na minha opinião pessoal um deles ter mais méritos técnicos do que o outro, é inegável que o fato ambos serem dirigidos por mulheres é motivo de celebração. Afinal, em 2020 as obras da empresa que chegaram ao Oscar vieram de diretores já manjados: falo de David Fincher (Mank) e Aaron Sorkin (Os 7 de Chicago).

Assim, entre erros e acertos, a existência de A Filha Perdida no catálogo da plataforma de streaming é um indicativo de mudanças importantes na indústria. Tomara que a inevitável presença de Colman (e quem sabe de Gyllenhaal) nas cerimônias de premiação sirva de incentivo para que novas diretoras e roteiristas ganhem seu lugar ao sol.

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