Em 1964, poucos anos depois após um dos momentos mais dramáticos da Guerra Fria (A Invasão da Baía dos Porcos), Kubrick lançou um de seus mais emblemáticos filmes: Dr.Fantástico ou Como Aprendi a Parar de Me Preocupar e Amar a Bomba. A obra conta de forma cínica e satírica sobre a possibilidade de hecatombe nuclear diante do conflito sobre Estados Unidos e União Soviética. Uma fábula sobre a infantilidade masculina, o excesso de burocracia e a falta de preparo de figurões em situação de liderança.

Em 2021 os problemas são outros. A iminência do cataclisma ambiental, o retorno da extrema direita e o desastre na condução da pandemia de Covid-19 são os novos desafios que enfrentamos. Diferente do filme de Kubrick, no entanto, estas questões não estão restritas à indivíduos em posição de poder, mas massificados dentre a população – criando a polarização entre a racionalidade e a insanidade (o “Não Olhe para Cima” a que se refere o título). É nesse cenário desesperador que se debruça o novo filme de Adam McKay, premiado diretor de Sucession, A Grande Aposta e Vice, que parece ter se achado nas sátiras políticas.

O enredo é bastante simples: o que aconteceria no mundo atual se cientistas descobrissem que um meteoro está vindo para a Terra? Se em obras dos inocentes anos 1990 a solução seria treinar mineradores para explodir o cometa ao som de Aerosmith, em plenos anos 2020 ninguém mais compraria essa premissa. Se após o fim da polarização entre regimes socialistas e capitalistas, fomos marcados por um período de ingenuidade coletiva marcado pelo discurso da globalização e da “Aldeia Global”, não demorou muito para a realidade se impor.

Algumas décadas depois nos parece bem claro que nem mesmo desafios globais nos levam ao consenso e a união de esforços: de forma um tanto similar quanto as diferenças que vimos entre o clássico desfecho dos quadrinhos do Watchmen em 1987 e sua série na HBO em 2019. É justamente ao tentar fazer humor com esse cenário complexo (e insano) que vivemos, que se evidenciam os maiores trunfos e as maiores questões de Não Olhe para Cima.

Afinal, como ser satírico em um mundo em que o absurdo foi normalizado (ou melhor, normatizado)? Grande parte das piadas de Não Olhe para Cima são apenas analogias de eventos que já vemos na realidade. Políticos dizendo que se sentem atraídos sexualmente por seus familiares, celebridades pornôs sem nenhum tipo de preparo político assumindo cargos importantes ou o bom e velho nepotismo em cargos de importância, são assuntos que já deixaram de ser escândalos a muito tempo.

Isso não significa que as piadas não funcionem: algumas, inclusive, se tornam ainda melhores se o espectador conseguir vislumbrar eventos análogos na realidade. Mas, por vezes, elas tornam o filme “azedo demais” – fazendo com que não criemos empatia com os terráqueos e passemos a torcer para o meteoro vir logo (aqui é impossível deixar de mencionar que o slogan “Vem Meteoro” foi utilizado como campanha publicitária da Netflix). Se esta perspectiva funciona em grande parte do filme, ajudando em sua comicidade, ela retira parte do impacto emocional de cenas mais “doces”, como a cena final entre Randall e seus amigos.

Quanto a isso, nosso background recente com a Covid-19 serve de contraponto dramático: mesmo diante do culminar do negacionismo como política de governo, abraçada por parte considerável da população, é impossível ficar indiferente à morte e ao drama social trazido pelo evento catastrófico. No entanto, há uma explicação razoável para isso – o filme claramente foi feito com a crise ambiental em mente, não com a pandemia de Covid-19. Ou seja, o filme se pauta em nossa reação contra um perigo “mais abstrato” e “à médio prazo” do que aquele que passamos (e ainda estamos passando).

De tal maneira, por mais injusto que seja, a pandemia se torna um parâmetro de “acertos” e “erros” das previsões de Não Olhe para Cima quanto à forma que governos e sociedades poderiam lidar com eventos desta magnitude. Se ele acerta ao construir um cenário de divisão da população entre negacionistas e pessoas com bom senso, ele claramente dá pouco crédito ao poder midiático do cometa, afinal, vimos como o Covid-19 se tornou pauta praticamente onipresente não só dos programas de TV, mas de todo um ecossistema de redes sociais, dando luz tanto à cientistas e divulgadores científicos (como as Natalias Pasternaks e Átilas Iamarinos) como ao que existe de mais abjeto na sociedade (e aqui pode se incluir todos os negacionistas e conspiracionistas que ganharam dinheiro em cima da divulgação de mentiras sobre a pandemia). Assim, faz sentido acreditar que no caso de um meteoro, teríamos mais tempo de TV para a grande pedra que vem do céu do que de fofocas sobre a vida amorosa de Riley Bina (Ariana Grande).

Falando em acertos, particularmente interessante é a trama de Dr. Randall, Leonardo Di Caprio, como a figura científica que ao ser alçada à fama, se deixa levar e se torna parte do problema. Em certo momento, Randall se auto proclama “necessário” para certificar que o pior dos governos acabe por fazer a coisa certa, não se percebendo (ou fingindo não se perceber) usado como puro verniz científico para sossegar a opinião pública e a mídia, enquanto absurdos são cometidos (testemunhamos algo parecido no Brasil, com membros de certos governos). Nesse sentido, seu improvável romance com Brie (Cate Blanchett) funciona como uma materialização de sua mudança de caráter.

Outro aspecto interessante do arco de Randall é como o filme a utiliza para demonstrar que apenas por ser um homem branco, sua imagem se torna automaticamente mais palatável do que a de seus companheiros. Mesmo que dentre os três, ele seja o “menos merecedor” daqueles holofotes. Afinal, Randall é acompanhado da pessoa responsável pela descoberta do cometa (Kate, personagem de Jennifer Lawrence) e de um cientista com um cargo hierárquico muito mais alto (Teddy, interpretado por Rob Morgan). Não bastasse isso – Randall também é o personagem menos “midiático” dos três, não tendo a honestidade brutal (e memética) de Kate e nem o media training de Teddy, sendo inclusive ironizado no primeiro terço da obra pela chatice de suas explicações. Assim, é particularmente acertada a caracterização de Randall como essa figura que é “bonita sem se dar conta” – uma metáfora para os privilégios que ele não percebe que tem a frente a seus dois companheiros.

Falado no elenco, ele é estelar – sendo provavelmente o maior chamariz do filme. O já comentado trio principal de cientistas funciona muito bem. Enquanto Randall representa a corruptibilidade dos bem intencionados, Kate funciona como nosso espelho – abraçando o cinismo e o niilismo frente ao absurdo que se impõe. Aqui, o filme peca em não desenvolver um pouco mais Dr.Teddy, cuja razoabilidade e maturidade, serviriam como uma bússola moral menos cínica, naquele mundo. Falando em cinismo, impossível não citar a composição bem humorada de Meryl Streep, como uma versão feminina de Donald Trump. Aqui fica claro que a multipremiada atriz abraça o absurdo e não tenta de forma alguma dar uma profundidade à sua personagem, parecendo uma esquete do Saturday Night Live (programa que serviu de origem para Adam McKay). E se essa superficialidade pode ser visto como um erro na construção clássica de personagens, no mundo em que vivemos, talvez seja a única possibilidade: pode ser que seja impossível encontrar razoabilidade em certas criaturas de nossa história recente.

Também vale citar as divertidíssimas trocas entre Tyler Perry e Cate Blanchett, essa última trazendo um aspecto melancólico por baixo das aparências de sua personagem. Outro destaque fica para o “bilionário excêntrico” vivido por Mark Rylance, cuja desafinação de voz, faz lembrar um adolescente – ressaltando ainda mais a loucura que é permitir que sua corporação se torne responsável pelo destino da Terra. Jonah Hill fica em seu lugar de conforto, sendo prejudicado pelo excesso de piadas “pouco orgânicas” de seu personagem, enquanto Timothée Chalamet parece se divertir com um papel bastante distinto daqueles que costuma viver. Já Melanie Lynskey sofre com a ingrata missão de tentar dar um pouco de coração àquele mundo de cinismo e insanidade.

No fim, Adam McKay entrega um filme ainda mais azedo do que A Grande Aposta e Vice, e,  por mais incontestável que seja o seu valor no momento atual, talvez seu grande erro seja não nos importarmos com o destino de seus personagens. Se isso funcionava no clássico de Kubrick, era porque o distanciamento emocional era dado pela conjuntura: a obra era sobre soldados e uma elite burocrática em um momento em que a sociedade tinha pouca ingerência sobre as principais pautas políticas. Aqui, os protagonistas somos nós – pesquisadores, cientistas e pessoas comuns, que tentam sobreviver diante de uma ideologia caótica e irracional.

O mundo certamente mudou e hoje nos sentimos como parte substancial do problema, mas também da solução. Lutamos todo dia para ter um desfecho diferente daquele que parece desenhado por certas lideranças políticas, corporações e uma parcela significativa da sociedade. Mesmo diante da tendência natural ao cinismo, ainda somos muitos que olham para cima. Ou é isso que prefiro acreditar.

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