Por Vinícius Aranha de Medeiros.
Crítica originalmente feita por Vinícius quanto aluno de Cinema e Audiovisual da UFF para a disciplina de Estágio Docência II, do professor Gabriel Linhares Falcão.
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Showgirls (1995): Chance única no inferno
Uma forma de situar a discussão sobre Showgirls é procurar o diálogo que o filme estabelece com o resto da obra de Paul Verhoeven. Não somente pelos choques de “mau gosto”, mas pelas teias de simbolismo psíquico que envolvem seus personagens, bem como o olhar ácido sobre o fundo burguês do melodrama. Showgirls, primeiramente, fala de um lugar onde a explosão de signos de prazer e extravagância alimentam toda uma economia de mercado, um ponto de encontro entre perversões diversas do capitalismo neoliberal dos Estados Unidos. Se o bombardeio de imagens de cunho erótico ou trágico sempre perseguiu o destino corrompido dos anti-heróis de Verhoeven tanto nas suas ações pragmáticas quanto nas relações afetivas, no longa de 1995 todo o conflito se dá no olho do furacão dos desejos proibidos: Las Vegas, deserto habitado pelos jogos, clubes noturnos e pela publicidade.
A ameaça de morte que atravessava o cotidiano do policial futurista de Robocop (1987) não está muito longe se pensarmos que o problema da perversão entra com a mesma intensidade que o da violência urbana no conjunto de sua obra. Entre os filmes holandeses de Verhoeven, o imaginário freudiano talvez se expressasse de forma mais clara, colhendo alguns frutos do surrealismo na temporalidade fragmentada e no humor irracional – pensando nos teóricos do início do século XX, como André Breton, Max Ernst e Louis Aragon, que abordavam o movimento surrealista pela necessidade constante de negar o tempo como conceito unívoco e afirmar um presente absoluto, por isso descontínuo de acordo com as forças políticas de repressão em recortes históricos específicos¹. Como Annette Michelson coloca, a formulação do surrealismo no cinema se dá principalmente pela maneira como a disposição do espaço pode ser decomposta, aprofundada e extrapolada em relação à pintura, o que chama atenção de Breton nas possibilidades visualizadas, por exemplo, no cinema de Louis Feuillade. Num filme como O Quarto Homem (1983), por sua vez, os sinais de perigo e dominação se acumulam numa progressão ditada pelas viradas do roteiro, que forçam os personagens a uma desorientação infinita, experimentando com a própria fronteira entre ficção e delírio na mesma medida em que o caos psíquico contamina a relação dos homens com o mundo.
Nos filmes americanos do diretor, o pesadelo se submete às regras de Hollywood, limitando a expressão analítica. No entanto, vemos também que o impulso onírico com que Verhoeven trabalhava já nas etapas de planejamento e roteirização acabou sendo redistribuído nos filmes hollywoodianos – afinal, o pesadelo erótico e paroxístico pode não surgir estampado na narrativa desses projetos, mas o esforço de trabalhar essas questões na superfície e nas escolhas de marcação norteou toda a obra do diretor de Robocop até O Homem sem Sombra (2000). Sobre a necessidade de discutir princípios de prazer em ambientes de trabalho, de persistir no projeto conceitual de unir melodrama com jogos de escolha no seio das relações sociais, Paul Verhoeven foi levado a uma experimentação mais agressiva com os instrumentos de realização, de forma que as ambições discursivas terminam ressaltadas, se mostrando aos gritos, formulando um amálgama de impulsos onde os filmes e seus temas são uma coisa só, fundida e concentrada.
Por isso que Showgirls dá relevo ao imaginário freudiano dos longas anteriores de Verhoeven de forma bastante especial. Vegas é o buraco negro mais perfeitamente absurdo que pode absorver esse amálgama do “Verhoeven americano” sem desviar nenhuma de suas intenções sobre o tema do narcisismo yuppie – e ainda traz à tona o que o diretor faz de melhor, reanimando a tradição satírica de mestres como Joseph Mankiewicz e Blake Edwards. Estamos um pouco longe do surrealismo cerebral de O Quarto Homem, mas em seu lugar temos uma verdadeira dança selvagem que seduz, ataca e repudia de acordo com os confrontos que surgem em cena, através de personagens que patinam entre o orgulho narcotizante e o perigo real de destruição. Showgirls aproveita o excesso que está no coração dos espetáculos de um mundo neoliberal para conservar essa energia em movimento, frenética e brutal, mudando a direção de seus avanços o tempo todo, batalhando em pé de igualdade com as forças de corrupção profunda dos objetos culturais colocados em cheque. Um movimento único de afeto e ódio que só víamos por esboço em Instinto Selvagem (1992), por exemplo.
Algo também ressoa de como Louis Skorecki, em Contra a nova cinefilia (Cahiers du Cinéma, nº 293, outubro de 1978), se referia ao fascínio que estava no centro da explosão da “política dos autores” como forças de autonomia artística que duravam justamente pela influência do ambiente controlador de Hollywood, e não apesar desse sistema. O caso de Verhoeven é ilustrativo pela evolução pragmática de seu estilo na indústria hollywoodiana, mas também pelas previsões de Skorecki sobre a impossibilidade de um tal sistema criativo prevalecer depois que o estrelato dos autores se confunde, na imprensa, com aquele sistema inicial de hierarquia. O fracasso de público e crítica de Showgirls, além de injusto e desmedido, dá o tom de uma realidade intransigente cujos termos para que um projeto dessa estatura seja autorizado só possam existir de tempos em tempos, por encontros e acasos específicos.
Muitos dos deslocamentos provocados pelo filme parecem vir de uma inventividade que nada tem a ver com ignorância e gestos falsos, mas somente um trabalho intuitivo, direto, predominantemente físico de observar um contexto social e dar-lhe uma forma equivalente à tela grande. Definitivamente não falamos da Hollywood que deu as condições para Samuel Fuller realizar alguns dos mais memoráveis filmes-B dos anos 50 e 60 – embora o senso de humor demente e a distorção do realismo não sejam muito distantes. Com o cenário burlesco e a mistura de atores reconhecíveis e anônimos que lhe foram dados, Paul Verhoeven jogou com a probabilidade para esgotar as energias disponíveis rumo a um superlativo, a uma sugestão do absoluto próxima a uma ordem profunda de mundo. De todos os riscos empreendidos, temos que esse filme bastardo sugere, sem dificuldade, um organismo inteiro de controle de corpos, de entorpecimento e comércio de prazeres, de um fogo subterrâneo que abastece todo um imaginário publicitário perpetuado à luz do dia. A dança selvagem diz respeito à tentativa de absorver esse universo, e somente pela persistência, pela vivacidade de seus contrastes que chegamos à conclusão que a Las Vegas de Showgirls é também a Hollywood dos anos 1990.
O que nos leva à forma como as sequências de performance musical são colocadas: Coreografias repetidas como numa continuidade interminável, elevadas ao máximo do grotesco patético de Las Vegas, e acumulando os signos de transgressão – além das tracking shots abreviadas com planos ponto de vista que, mais tarde na narrativa, vão aproximando o ambiente das apresentações a um tipo de esporte sangrento com gladiadores e governantes sádicos. Os interlúdios de ação de Robocop se transformam em números cuja escalação de vulgaridade é tão catártica quanto os tiroteios, e sem abusar nos closes dos espectadores das arenas de Vegas. Em retrospecto, é como se esse público nem existisse, uma abstração que move secretamente esses cenários sem nunca terem reações ou silhuetas definidas. O simulacro dos palcos e o subir e descer de escadas são o único horizonte desses personagens, não à toa a barreira mal resolvida entre seus egos e a realidade (novamente o problema do inferno psíquico) embala boa parte de seus conflitos.
A protagonista Nomi (Elizabeth Berkley), com a qual passamos a maior parte do filme, parece uma combinação de repressões e traços narcísicos que terminam escapando em explosões constantes. Ao que tudo indica isso foi a causa de boa parte da recepção negativa do filme, por se tratar de uma personagem não só descolada de um consenso sobre “realismo”, como difícil de se identificar. Claro que nada disso importa, e que a energia intempestiva de Nomi compõe um elemento essencial da retórica do projeto. O fato do espectador presenciar tantos momentos da trama somente pelos olhos da protagonista, em sua passagem pelo mundo das danças eróticas, estabelece um lugar sempre instável na nossa percepção da ficção.
Assim como um único show define conotações diferentes visto da plateia e depois visto pela perspectiva dos dançarinos em ação, Nomi também é uma figura que está sempre se deslocando e que parece transitar entre pontos variados de disposição e postura moral. Aos olhos da personagem, a partir dos laços que constrói, a única saída é observar atentamente os ritmos do meio social e tentar se adequar a eles; o que certamente se prova no mínimo destrutivo num solo composto apenas de substâncias nocivas e gerentes perversos. Uma protagonista mais relacionável ao grande público não seria justo com o plano temático do filme, e as transformações nas atitudes da personagem seguem, até o fim, uma lógica similar à de um mercado especulativo.
A partir dessa postura incisiva Showgirls abre caminho para um segmento de puro horror social no clímax. O estupro caracterizado de forma absurda (mas também abrupta, nada exploratória) é como o ponto culminante dos avanços num microcosmo sempre perpetuado por esse perigo. No entanto, não falamos de uma saída moralista, porque o espaço simbólico que Verhoeven evoca desde o início é pulsante, concentrado a pistas emocionais das mais genuínas – um esquema de favores com estrelas hollywoodianas não era nenhum exagero em 1995 e hoje é ainda mais visível. A entrada seguinte no terreno dos sexploitations dos anos 70 é outra jogada decisiva: de um organismo sempre descrito por sua irrealidade e sua amplitude de poder, migramos para a única fantasia de vingança à altura dos danos efetuados.
Pensando como um realizador de filme-B, Verhoeven deu forma a uma superprodução com todo o potencial insurgente de que sonhavam os primeiros exploitations, aqueles que falavam de problemas de minorias e eram exibidos somente em áreas suburbanas. Depois de interrompido por um choque elétrico, o organismo de consumo se recompõe e se alastra ao infinito nos minutos finais, apesar das sugestões de afeto e de sobrevivência dos personagens que pareciam inimagináveis quando o espectador presenciava antes as brigas de gladiadores com música personalizada. A placa de Los Angeles junto à visão da rodovia compõem um quadro apocalíptico, mas também a perspectiva de que o movimento continua, os fluxos se sobrepõem e a rebelião segue seu curso às margens. Nenhum paraíso à vista.
Algumas comparações foram feitas entre Paul Verhoeven e Brian de Palma, talvez porque Instinto Selvagem e Vestida para Matar (1980) falem de subtextos parecidos e o erotismo tenha um papel importante nas duas obras. Mas existe uma diferença bastante expressiva: nos jogos entre perseguidor e vítima com de Palma, os objetos parecem atraídos por uma força singular, e todo o desprendimento da forma se dá no sentido de observar as quedas livres e então capturar o que foi depositado lá no fundo durante as sedimentações, caçando o sentimento duradouro no interior do faz-de-conta investigativo. Com Verhoeven, as forças que atraem os objetos sempre mudam de direção, assumem figuras inesperadas e deixam seus personagens como que desolados em seus caminhos horizontais e verticais pelas cidades. Independente do que está enterrado em Las Vegas, um novo dia surge ao horizonte, o herói tem a chance de se tornar o vilão, a caça pode até ser interrompida. Talvez por isso que o espetáculo nesses filmes seja mais agressivo, sem ritual de coroação – o universo afetivo precisa ser apreendido em estado puro. Falamos de um cinema que começa do zero a reconstrução do mundo humano, que assume a tarefa que exige mais instinto e respostas rápidas, confiando nos impulsos como a única garantia do dia seguinte.
Referências Bibliográficas