É importante pontuar a oportunidade que é se dispor a uma experiência antropológica: se colocar em um desconforto diante do desconhecido, com disposição para viver essa experiência, debatendo-se com suas próprias ideias de maneira sincera e honesta. Detetive Chinatown: O Mistério de 1900 (2025) entrega esse tipo de vivência complexa. Pode parecer caricato demais, maniqueísta demais, soft power demais, mas que parte de Hollywood também não é assim?
Detetive Chinatown: O Mistério de 1900 conta a jornada em torno da investigação sobre a morte misteriosa de uma jovem branca estadunidense e de um senhor indígena, ocorrida em Chinatown em 1900. O filho de um influente líder chinês local é acusado de ser o assassino, enquanto a comunidade é inflamada por sentimentos xenófobos e racistas, alimentados por lideranças que cultivam ódio contra os imigrantes chineses.
Sendo o quarto filme e prelúdio de uma franquia muito bem-sucedida na China, esta é uma obra típica de sessão da tarde — aquela que assistimos com a família, esperando o café ficar pronto, rindo dos personagens com os primos na sala. É um filme sem violência gráfica explícita, que usa muito o humor para transmitir uma mensagem importante sobre seu povo. O mesmo soft power que se usa lá, usa-se aqui. O mesmo veículo de mídia empregado para criar uma imagem xenófoba pode ser usado para potencializar a autoestima de um povo e sua cultura, temos como exemplo Ainda Estou Aqui (2024).
Isso não significa necessariamente devolver na mesma moeda ou apenas manipulação das massas, mas sim aprender a usar a espada contra o próprio ferreiro e munir seu povo de uma armadura: a autoestima e a valorização de sua própria cultura.
Detetive Chinatown 1900 possui uma narrativa complexa e um tanto mirabolante, repleta de camadas – quase como uma novela de 2h15min. Com múltiplos núcleos dramáticos e um elenco numeroso, a extensão do filme se justifica. A sequência inicial, ambientada anos depois de Cristo, parece desconectada da narrativa principal, que demora a engrenar. Após essa abertura, o filme mergulha na apresentação dos personagens – um processo especialmente confuso devido à quantidade de tramas paralelas e à falta de conexão orgânica com a cena anterior. Para quem não está familiarizado com a franquia, essa introdução muito lenta do conflito e do elenco pode gerar mais confusão do que engajamento.
Com uma linguagem muito novelesca, os protagonistas são bonzinhos demais, os vilões maus demais, e todos muito caricatos. O filme segue uma cartilha política explícita – os estadunidenses como antagonistas odiosos, os chineses como heróis virtuosos – replicando o mesmo maniqueísmo que Hollywood aplica a vilões russos. Essa abordagem não define, por si só, a qualidade do filme (afinal, ele não chega a distorcer fatos ou ser totalmente etnocêntrico), mas tira o impacto dramático de seus personagens em troca da cartilha.
Há uma contradição estrutural: a trama critica a manipulação midiática que demoniza imigrantes chineses, mas seus protagonistas reagem à opressão com certa passividade diplomática, quase alienígena para um público brasileiro (ou ocidental). A comédia acaba corroendo a dramaticidade, os personagens enfrentam alguns problemas com resiliência (lágrimas, indignação), mas o sofrimento parece um contratempo menor, não um problema de fato. Todos os conflitos dos personagens parecem pouco importantes ou facilmente contornáveis. Choram, mas não sangram; sofrem, mas não deixam marcas. Essa desconexão entre peso narrativo e reações artificiais fez com que eu, espectadora, deixasse de me importar – não por falta de empatia, mas porque a obra mesma tratou suas dores como mera alegoria.
A narrativa demora a apresentar seu conflito central, dedicando tempo excessivo à exposição de personagens e ambientes. O espectador leva um bom tempo para compreender todas as nuances do crime e suas conexões com o elenco – enquanto isso, a investigação avança a passos lentos, entremeada pelo desenvolvimento da amizade entre os dois protagonistas.
Claramente inspirado em Sherlock Holmes, o filme mescla gêneros com certa habilidade: embora a comédia predomine, não faltam momentos de peso dramático. Aqui, porém, o protagonista distingue-se do detetive britânico: sua inteligência não beira o sobrenatural como a de Holmes, assim como seu companheiro não é tão passivo ou impressionável quanto Watson. O desfecho, contudo, é bem parecido com uma história de Sherlock: todas as peças do quebra-cabeça se encaixam precisamente no final, revelando pistas que haviam sido sutilmente omitidas ou discretamente apresentadas ao espectador – um final que, apesar de satisfatório, talvez peque por excesso de convenções do gênero.
É interessante que se tenha pensado em inserir um personagem indígena, como um povo também marginalizado, e que une forças para trazer justiça para os seus povos. O subtexto é que os chineses, diferentes dos estadunidenses, conseguem conviver com as diferenças e abraçam seus aliados. É novamente uma linguagem narrativa que enfatiza o soft power e o discurso político por trás do humor.
É importante ressaltar que a linguagem do gênero permite uma certa falta de seriedade com a construção de personagens realistas, embora, ao mesmo tempo, a representação indígena não é satisfatória, já que o personagem é caricato como nenhum outro no filme. Porém, há também um desenvolvimento desse personagem, que vai perdendo essa perspectiva caricata ao longo da trama e ganhando carga dramática.
Sendo assim, assistir a Detetive Chinatown: 1900 é um divertido exercício de alteridade. Quando Paulo Gustavo diz que “rir é resistir”, podemos também interpretar que usar o humor para transmitir uma mensagem é evidenciar certas realidades e verdades duras e difíceis, além de ser um processo de cura que perpassa a conscientização. O filme tem seus problemas, mas me vi resistente em pontuá-los excessivamente, tendo em vista o contexto atual de desinformação e sentimentos irracionais que a cultura chinesa enfrenta. Por isso, era importante enfatizar que, apesar das críticas mais técnicas e narrativas em torno da obra, entendo a complexidade envolvida nela e em sua chegada ao Brasil. Seu conteúdo e sua narrativa é muito mais ligada ao mundo fora do filme do que dentro do filme. Torço por sua boa recepção e que mais portas se abram para a cultura chinesa no Brasil.