Crítica por Renata Serra.
Sinopse: Uma jovem atriz viaja para Hollywood e se vê emaranhada numa intriga secreta com uma mulher que escapou por pouco de ser assassinada, e que agora se encontra com amnésia devido a um acidente de carro.
Mulholland Drive, ou no título brasileiro Cidade dos Sonhos, é uma das principais obras na filmografia de David Lynch e um dos clássicos do cinema moderno. O conto misterioso e devaneador de Betty e Rita foi lançado em 2001 e agora, 24 anos depois, com o falecimento de seu criador, chega aos cinemas brasileiros com uma versão remasterizada supervisionada pelo próprio Lynch e seu diretor de fotografia, Peter Deming.
Cidade dos Sonhos recebe seu nome original pela rua que dá início a sua história. É na Mulholland Drive, em Los Angeles, que uma mulher misteriosa (Laura Harring) sofre um acidente e escapa da morte, encontrando refúgio em uma apartamento próximo – onde, no dia seguinte, conhece Betty Elms (Naomi Watts), uma jovem aspirante a atriz que deseja seguir seus sonhos na grande Hollywood, e assume o nome de Rita, inspirada por um quadro da atriz Rita Hayworth. Os desejos de Betty se fundem com a misteriosa vida da suposta Rita, dando início a uma busca pela identidade da mulher repleta de mistérios e intrigas que se aproxima aos grandes filmes noirs dos anos 40, pelo menos inicialmente. Em segundo plano, acompanhamos o diretor Adam Kesher (Justin Theroux) e a manipulação que ele sofre de mafiosos para contratar uma jovem atriz para o papel principal de seu novo filme. E então, num ponto específico da narrativa, tudo se reconstrói sob uma nova ótica – subvertendo completamente a narrativa inicial. Betty transforma-se em Diane, uma atriz fracassada que precisa lidar com seus sentimentos para com sua amada, Camille (Harring), e seu novo romance, o diretor Adam Kesher.
Apesar da aparente linha narrativa, o filme recebe sua fama por seu mistério e pelas diversas interpretações que recebe devido a símbolos inexplicados e falta de linearidade. Como grande parte das obras de Lynch, o espectador é deixado para pensar sobre o seu significado com poucas pistas, o que se torna a principal qualidade do filme. O diretor subverte as expectativas ao explorar sua narrativa sem explicações, manipulando tempo e espaço de forma magistral, criando uma atmosfera de constante tensão e mistério. Lynch explora gêneros e constrói um romance dentro de um thriller psicológico que, no final, são apenas peças de um quebra-cabeça fílmico o qual ninguém completa. Cidade dos Sonhos fala sobre desejos não realizados, identidades fragmentadas, amor não correspondido e a decadência emocional escondida sob o brilho da fama. Lynch cria uma sátira à indústria do entretenimento e, ao mesmo tempo, uma meditação sobre culpa, rejeição e autoengano. É com a trilha sonora guiada pelo seu colaborador de longa data, Angelo Badalamenti, que o filme constrói sua atmosfera aterrorizante e inquietante, e transforma o sonho de Betty Elms em Los Angeles em um grande pesadelo, onde nada é o que parece. Quando a lógica narrativa é inexistente, a música de Badalamenti é a chave para a compreensão dos nossos sentimentos diante ao que assistimos.
O filme não se consolidaria sem seu elenco, em especial Naomi Watts, que domina tanto a persona meiga, sonhadora e talentosa de Betty como a versão paranóica, desiludida e suicida de Diane. A química entre Watts e Laura Harring, seja ela a amnésica Rita ou a sedutora Camilla, transforma a narrativa de um thriller psicológico para uma linda e, em seguida, trágica história de amor. Justin Theroux e a sátira a indústria hollywoodiana que seu personagem Adam Kesher oferece à história também é um dos pontos altos da obra, seja a constante ridicularização e subjugação que Kesher sofre na primeira metade do filme, ou a persona do diretor charmoso que assume na segunda parte, representando amor para Camilla e o maior inimigo de Diane.
Sonhar é uma das mais inexplicáveis e inevitáveis experiências humanas, e é a tal complexidade do mundo dos sonhos que Lynch traduz em seu cinema e na história de Betty e Rita. A abordagem surrealista de uma narrativa aparentemente familiar que se encontra no inconsciente de sua protagonista é o que configura Cidade dos Sonhos como um dos grandes títulos do cinema – o romance, o mistério, o erotismo, o horror e até mesmo a comédia são sentimentos evocados na narrativa como são em um sonho ou em um pesadelo. A divisão de atos do filme entre o mundo de Betty e o mundo de Diane é curiosa, e o segundo ato ressignifica os personagens da narrativa de maneira interessante, explorando como sonhos podem vir simplesmente do desejo de ter uma vida irreal, isto é, da nossa vontade subconsciente de ter aquilo que não nos é oferecido na vida “real”. Rostos importantes do mundo inconsciente podem ser apenas pessoas que nos passaram quando acordadas, nomes surgem do crachá de uma garçonete e romances fracassados tornam-se poderosas histórias de amor.
Quando analisado, Cidade dos Sonhos não é especialmente confuso, apesar de seus acontecimentos “oficiais” serem estabelecidos apenas em parte do filme. Por que, então, buscar compreender toda essa história e se afastar do que pode ser sentido naquilo que não é real, apenas onírico? Essa é a beleza de Cidade dos Sonhos. Acima de tudo, é um filme para ser sentido, e não necessariamente interpretado e completamente entendido. É na ambiguidade das perguntas sem respostas que David Lynch ofereceu ao cinema uma de suas mais complexas e bonitas obras, pautada nos desejos subconscientes de estruturar nossas verdades e sentimentos em fantasias, criando um mundo fictício que ressoa em nossos sonhos. É no legado da incerteza de seus filmes e na tragédia de seus personagens que Lynch será lembrado na história do cinema, e é essa oportunidade de revisitar, ou conhecer, sua obra que o relançamento de Mulholland Drive oferece. Silencio.